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TEXTOS VENCEDORES I CONC AECALB - J. CIVIL
TEXTOS VENCEDORES I CONC AECALB - J. CIVIL

TEXTOS VENCEDORES NO JÚRI CIVIL DO I CONCURSO LITERÁRIO DA AECALB

 

EM POESIA

 

 

MEDALHA DE OURO

 

CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI (ARCOVERDE - PE)

DOR MAIOR

 

Padecendo o profético suplício,

pendurado na cruz, lá no Calvário,

Jesus Cristo vivia o ato vicário

do “Cordeiro de Deus” pro sacrifício.

 

Se não fosse predito desde o início,

nada mais incoerente que o cenário

em que o Justo é julgado temerário

por fazer da justiça um exercício.

 

Em Jesus, pois, “O Servo Sofredor”,

outra dor lhe doía mais que a dor

dos maus-tratos e açoites recebidos:

 

era a dor de saber que tanta gente

mantinha o coração indiferente

àquele que morreu pelos perdidos.

 

 

 

MEDALHA DE PRATA

 

CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI (ARCOVERDE - PE)

A BÍBLIA É A VERDADE

“Santifica-os na VERDADE; a tua PALAVRA é a VERDADE” (João 17:17)

                    

 

Hoje o mundo se dobra aos vaticínios
dos arautos da mídia consumista,
que arrasta multidões a tantos vícios
no tobogã do pool relativista.
 
O saber filosófico-hedonista

faz ruir estruturas e princípios

e leva, de roldão, a tantos ímpios

que, cegos, seguem a lei escravagista.

 
Enquanto assim caminha a humanidade,
o pós-moderno mundo agonizante

de Cristo vai ficando mais distante,

 

pois, contra a multidão, o mal conspira:

convence que é verdade a vil mentira

e que é mentira a Bíblia, que é a Verdade.

 

 

MEDALHA DE BRONZE

 

JOSEVÂNIO ALMEIDA DE ARAÚJO  (NITERÓI - RJ)

SONETO DECASSÍLABO A FLORBELA DESCANSANDO EM ÉVORA

 

Àquela cujo olhar se desfez cedo...

Àquela aos cinco lustros enterrada...

eu deixo aqui meu simples arremedo

como um soneto à flor bela espancada.

 

Apeles teve morte protestada

por ti, conquanto o frio e final dedo

da fouce fosse inapelável fada

ao fado dado ao teu irmão iledo.

 

Já morta tu moraste em Matosinhos,

mas, inquieta, a Évora os caminhos

buscaste insatisfeita e ressequida.

 

Évora foi o teu último lar,

e hoje não mais importa o vil falar

do povo a não cuidar da própria vida.

 

 

 

SALETE NASCIMENTO (ESTÂNCIA - SE)

SÚPLICA

 

A sombra que encobre

a tarde arde

É severa a luz do fim do dia

Pássaros calam seus cantos

A noite se veste de tristeza

Ave Maria...

 

Sinos repicam

seus blins blons

Luzes se acendem

É noite de Natal

A música é divinal

Meu coração entristece

Faço uma prece

 

Senhor! Suplico aos anjos

Pelas tantas Marias

Sem pão sem moradia

Barrigas vazias

Pelos Josés

Cansados da lida

 

Pelos Jesus encravados

Nas manjedoras da dor

Experimentando o desespero

Da injustiça do desamor

 

Suplico pela humanidade

Esquecida do bem

Pervertida, degenerada.

Amém!

 

 

EM CONTO

 

MEDALHA DE OURO  

 

ALFREDO NOGUEIRA FERREIRA (FLORIANÓPOLIS - SC)

O MESTRE VAI AO ESTÁDIO DE FUTEBOL

 

Era domingo. Um sol fulgurante, morno e aconchegante, num céu azul sem mácula, alegrava o dia.

Havia um movimento desusado nas ruas . Gente, carros buzinando, ônibus atulhados, davam mais vida e redobravam a alegria nesse domingo.

Toda a festiva animação era a decorrência do grande clássico de futebol que se jogaria dentro de algumas horas.

Os portões do estádio já estavam abertos e uma mole humana se concentrava nas imediações.

Viam-se bandeiras, faixas, grupos com tambores e cornetas, homens e mulheres envergando as camisetas de seus clubes. Gritos, palavras de ordem, desaforos, enfrentamentos, por vezes, intervenções da polícia.

Uma multidão imensa coloria as bancadas do imponente estádio. Entrava sempre mais gente que se acomodava, agora, em pé, na volta do campo. Já próximo do início do jogo, entra no estádio um grupo compacto de homens e algumas mulheres e que chama a atenção pela sobriedade do comportamento. Dava a impressão de um grupo de turistas, pois não tomava partido por qualquer dos litigantes. Era notória a presença de um líder que comandava o grupo. Simpático, erecto, barbaçudo, sandálias nos pés, envergava uma túnica vermelha.

A bola rolava, os torcedores manifestavam-se. Gritos, xingamentos, um coro de vozes apoiando o time dos encarnados feriam os tímpanos dos mais próximos, neles se incluindo aquele peculiar grupo. O adversário fardava-se de azul e seus apoiantes situavam-se no lado oposto do campo.

Em determinado momento um jogador dos azuis apanha a bola, dribla um, avança, finta um segundo, um terceiro e já na área, para, levanta a bola e de cabeça atira para o golo. A bola bate no travessão e sai. O líder do grupo que até ali se mantivera quieto e calado, aplaudiu, entusiasticamente, a jogada. Torcedores do outro  clube vaiaram o jogador e, tendo notado a manifestação daquele homem, começaram a ofendê-lo, lançando injúrias e insultos. Passados poucos minutos o goleiro dos rubros faz uma defesa assombrosa, “voando” para o alto e desviando a bola do ângulo, após uma cobrança de pênalti. Novamente aquele homem aplaudiu o lance de belo efeito. Toda aquela chusma que o havia vaiado ficou, agora, calada. Que torcedor era aquele que ora aplaudia os de azul, ora os de vermelho? E um deles, mais atrevido e gritando, perguntou:

– E aí, meu? Qual é o teu time?

Um dos do grupo ouviu o desafio e cutucou o Mestre (era assim que o chamavam) que falava com outro.

Este, calmo, virou-se para  o provocador e disse:

– Sou do Azul, a cor do céu. Veja como está lindo! O vermelho lembra o fogo, o sangue...

– O sangue que é vida, energia e força. O sangue que nos vai dar a vitória, emendou o outro.

– O sangue que é derramado em disputas inúteis,completou o Mestre.

O insolente não perdeu tempo e provocou:

– E por que esse vermelho que te cobre o corpo? E esses arreganhos, ainda há pouco, na defesa do nosso  goleiro? Não dá pra te entender, meu chapa!

– É simples, meu caro senhor, a cor nada mais é do que luz e a luz alumia o mundo. O mundo é a natureza. E a natureza é feita de cores. Assim, o mundo é colorido e por ser colorido é mais belo. Não devemos desmerecer as cores. Há criaturas que não aceitam certas cores por razões clubísticas ou outras. Isso não é próprio de alguém que se preza. Já disse, sou torcedor  do time azul, mas não deixo de vestir um blusão ou uma camiseta vermelha, sempre que me aprouver.

Isso foi dito em meio a uma zoeira atordoante e, assim, poucos puderam ouvir essas palavras.

O jogo continuava disputado, atraente, eletrizante. A bola não saía da área, ora de um, ora de outro, sempre com o risco de golo. E aí aconteceu... numa jogada rápida, dois avançados da equipe escarlate tabelando de cabeça, entram na área e um deles finaliza para o fundo das redes. A jogada arranca aplausos e leva ao delírio a sua torcida.

O Mestre aplaude, levanta os braços para os seus pupilos que seguem o Mestre nos aplausos.

O atrabiliário torcedor rubro empolgado vira-se para o grupo com a intenção de gozar os adversários e alvejá-los com ironias e indecências; e vê o Mestre  comemorando o gol. E não se conforma. E não entende o que vê. E em tom de provocação, grita:

– Só tinha de comemorar mesmo, seu palhaço. Os otários do teu time não fazem isso. São uns... (e cuspiu um palavrão).

O Mestre esperou que a  barulheira abrandasse, acercou-se do exaltado torcedor e, como nas anteriores intervenções, falou comedido.

– Sabe o senhor, que o esporte é um espetáculo que atrai muito público. Esse público sabe que vai encontrar duas qualidades: o bom e o belo. Há exceções é evidente. Ora, o futebol sendo um espetáculo é bom porque nos proporciona prazer. E se jogado segundo as regras e com qualidade, torna-se vistoso e de extraordinária beleza. Quem não vibra com um golo de bicicleta? Um golo de bicicleta é pura arte. Só ele já paga a entrada no estádio. Quem não aplaude um daqueles dribles que deixa o adversário estatelado no chão? Um drible assim é pura arte. Quem não se entusiasma vendo um goleiro “voando” para defender uma penalidade chutada no canto de sua goleira? Esse “vôo” é arte que encanta. Quem  não pasma quando um jogador apanha a bola no seu meio campo e, com ela grudada no pé, vai avançando e fintando quantos adversários lhe apareçam pela frente e, no derradeiro toque, passa pelo goleiro  e empurra a bola para a goleira vazia? Um lance assim não é uma obra de arte? Devemos aplaudir a arte no momento   em que ela se define aos nossos olhos. Não importa que a arte seja executada pelo adversário. Foi o que fiz. Se todos fizessem isso o futebol seria maravilhoso dentro e fora do campo.

A essa altura, já se cumpria o intervalo e o torcedor havia chegado mais perto do Mestre. E com  as arquibancadas menos rumorosas ficou mais fácil a conversação.

– E onde fica a torcida e o amor pelo clube que pede ou exige o recurso ao xingamento e ao palavrão? Retrucou o apaixonado torcedor rubro.

– A torcida e o amor pelo clube ficam intocados. Cada um vai continuar torcendo pelo seu time do coração. Eu me referi aos lances de efeito, de grande beleza. A beleza dentro do campo deve ser aplaudida. E quem assim proceder estará dando um espetáculo de beleza fora do campo. Quanto ao xingamento e ao palavrão, aquele que os profere dá uma pobre demostração de si, não ajuda o time em nada e estimula mais o ânimo belicoso.

– Eu não vou nessa conversa de que tudo é arte e maravilha dentro do gramado. Não vês agressões, violências, brigas generalizadas? E digo mais, cara. Em noventa minutos de jogo, só há trinta ou quarenta minutos de jogo jogado. A arte e a beleza de uma jogada é exceção. O expectador é o mais prejudicado. Os jogadores usam de malandragem e de desonestidade o tempo todo. Um tipo toca o outro com o dedo e o cara cai ao chão, rebola três, quatro vezes, abre a boca e grita, parece que vai morrer. São desonestos, fazem uma falta claríssima e dizem ao juiz que nada fizeram. Chutam a gol, a bola vai direto pra fora e apontam logo para o escanteio. Tinha de haver um código de ética para os jogadores. E os técnicos deviam chamar a atenção do jogador para este aspecto.

– É verdade. Há muitas faltas e é pena. Isso torna o espetáculo caro para um esporte que se diz popular.

– Não tens jeito de torcedor, desses que frequentam os estádios sempre que há jogos, mas parece que entendes do assunto. Então, me diz, qual seria a solução para o caso?

– É simples. O jogador de qualquer modalidade esportiva deve olhar o adversário como um colega de profissão, melhor ainda, como um irmão. Ninguém vai tratar mal um irmão, não é assim?

– Isso não funciona. Os caras entram em campo para enfrentar um inimigo. Tinha de haver uma punição mais dura para esses infratores. Repito, um código de ética para os jogadores.

– Esse código já existe e tem um só artigo.

– Como assim?

– Está dentro de cada um.

– Não entendo, cara. Põe clareza nisso.

– Ama o teu próximo como a ti mesmo. Se não queres o mal para ti, não o faças a outro. Este preceito , se fosse levado à risca, resolveria tudo.

– Não acredito nisso. É coisa do passado. De dois mil anos atrás e nesse tempo nem futebol havia. Hoje, no futebol, só interessa vencer. Vencer significa mais dinheiro e é o dinheiro que comanda o futebol . E para vencer vale tudo – até quebrar uma perna ou um braço do adversário. As entidades esportivas, os dirigentes, os técnicos, os jogadores, os empresários dos jogadores só pensam em dinheiro, querem enriquecer rápido. Estamos diante de um capitalismo feroz no reino do futebol.

O Mestre concordava com o torcedor, pois, o que ele dizia era evidente. Porém não abdicava de seu ponto de vista.

– Mas lembro, e uma vez mais, que o futebol é um espetáculo e como tal deve ser jogado. E dar pontapés e agredir o outro não é esporte. Precisamos, urgentemente, ser mais humanos. O que vemos é um clubismo doentio que cega  as pessoas e lhes tolhe a razão. E quando esta não funciona o homem se embrutece. E então, nosso próximo já está muito distante de ser um irmão.

– Não achas que os técnicos com a responsabilidade do cargo e com a ascendência que têm sobre os jogadores podiam ter uma palavra a dizer nesse problema?

– Os técnicos, muitos deles, mandam bater, jogar duro com o adversário.

– Então para que servem os técnicos?

– Para nada. O técnico é um desperdício para o clube. É o que mais ganha e o que menos rende. Começa que está do lado de fora do gramado, portanto, não joga. E quem ganha ou perde os jogos são os que estão lá dentro. Digo mais: são eles, muitas vezes, a razão da derrota do time.

– Mas, há aqui uma contradição. Se não faz nada, como diz, e se são até a causa de derrotas, por que é que são tão disputados?

– É isso que me intriga. Como é que uma diretoria composta de homens (que se supõe) esclarecidos paga uma fortuna para um cidadão que é figura nula numa equipa de futebol? E depois, – o que é altamente assombroso – despedem-no após duas derrotas e contratam outro, talvez por uma soma maior ainda.

– E, depois, de tudo o que disse, eu pergunto. E para que serve o técnico, então?

– Para nada. O técnico é uma figura decorativa, uma espécie de rei que não manda e, principalmente, que nada decide.

– Aí eu não concordo. O técnico manda, sim senhor, é ele que determina a  estratégia do jogo, a tática a ser usada, a escolha dos jogadores, os que devem ser substituídos, o ritmo a ser empregado e por aí vai...

– Meu caro senhor! Aparentemente, manda. Contratado a peso de ouro ele não tem que dizer alguma coisa a seu jogadores? Não chamam a isso preleção? Preleção é dar lição, é ensinar. Ora, o técnico não ensina o jogador a jogar. O que faz é dar umas noções de tática, e de como atuar dentro de campo. Dizer isso e não dizer nada é o mesmo. No campo vão encontrar um adversário que pode desfazer todos os seus intentos. Basta que tais adversários sejam melhores. Melhores, digo. E aqui está o segredo de tudo – os melhores serão sempre os vencedores, seja qual for o técnico. Há exceções, claro; estas, confirmam a regra. Mas, dizia, por essas preleções começaram os técnicos a ser chamados de professores. Com isso desmoralizaram uma classe de escol. A classe mais imprescindível de um país, pois, sem essa classe, nenhum país cresce, nenhum povo se torna civilizado. O professor é alguém que muito estudou e que depois vai ensinar, em qualquer ramo do conhecimento, a tornar uma pessoa capacitada a exercer as suas habilitações e a vencer na vida. É como um oftalmologista que procura dar luz aos olhos de um ceguinho. Ora, o que vemos são técnicos quase iletrados dirigindo equipes de futebol. O que se pode esperar deles?

– Quer dizer, então, que é um despropósito contratar um técnico de futebol?

– Sem dúvida. Com o que pagam para contratar um técnico, comprariam uns quatro ou cinco muito bons jogadores. Isso é que deixaria mais forte e competitiva a equipa. E com o salário do técnico, a cada mês, pagariam dois ou três jogadores do elenco. Olhe, para não dizer que não servem para nada, servem, pelo menos, para divertir o publico. São mais atores cômicos do que, propriamente, técnicos de futebol. Eu me divirto muito com eles quando vejo os jogos pela televisão. Mas não vou falar disso, agora. Para encerrar essa questão do técnico vou lhe citar apenas uma (dentre muitas) expressão de um afamado técnico. Perguntado, ao final de um jogo, porque só vitórias acumulava, respondeu: “eu ganho porque tenho os melhores jogadores”. Essa resposta diz tudo.

A esta altura, o exaltado torcedor esquecia o jogo e era todo ouvidos para as palavras do Mestre. Já não era seu contraditor, mas um atento admirador desse homem que, apesar da aparência , conhecia as artimanhas do futebol e falava tão melifluamente.

Estavam tão embebidos no diálogo que estremeceram com a explosão de gritos e a ovação retumbante vindas das arquibancadas.

O jogo estava no fim dos acréscimos quando, depois de um escanteio a favor dos azuis, a bola é cabeceada para fora da área, cai nos pés de um contrário que, de uns trinta e cinco metros, manda uma “bomba” para empatar a partida.

A saída é tumultuada. Há gritos, aplausos, empurrões, bandeiras lambendo a face de muitos, a estridência de cornetas ferindo os tímpanos. Na confusão, o torcedor e o Mestre se desencontram.

Fora do estádio vão se formando grupos que logo se adensam em multidão. Um alarido infernal vai se alastrando naquele imenso espaço. Gritos histéricos, xingamentos, um batucar contínuo de tambores. O chão está coalhado de garrafas e de latinhas. Há, seguramente, nos vasos sanguíneos álcool suficiente para deflagrar um enorme incêndio. As provocações são cada vez mais ferinas. Um clima tenso, nervoso desce sobre o local. Há choques de torcedores, um prenúncio de conflito.

Surgem os primeiros policiais . Torcedores exaltados xingam os recém-chegados . Só se ouvem frases carregadas de fetidez. Logo dois se engalfinham e, num átimo, são dezenas em luta corporal. A polícia procura separar os desafetos. O que era um entrevero torna-se numa verdadeira batalha. Torcedores de ambos os clubes que lutavam entre si, envolvem-se com os policiais. A refrega é geral e vale tudo. Pedras, paus, garrafas, barras de ferro, cadeiras são arremessadas na confusão. Já há armas engatilhadas nas mãos de policiais. Um corre-corre desordenado e aflito gera mais confusão.

O grupo liderado pelo Mestre, ao deixar o estádio depara-se com um ambiente caótico e hostil. Uma espécie de névoa paira sobre esse palco de distúrbios, fruto do gás lacrimogênio e gás pimenta lançados pela polícia. Repórteres dos veículos de informação correm, ora procurando um flagrante insólito, ora fugindo dos canhões d'água.

Sem saber o que fazer o torcedor dos rubros, agora perdido na multidão, pede a um repórter – pensando em uma solução para acalmar os ânimos – que entreviste o Mestre. O repórter não sabe quem é o Mestre e onde encontrá-lo. O torcedor dá-lhe algumas referências sobre a criatura, ligando-o a um grupo. O repórter aceita a incumbência e com um megafone nas mãos lança no ar um apelo. “Pedimos a um ilustre senhor envergando uma túnica vermelha e que lidera um grupo de pessoas, o favor de dirigir-se até nós, com urgência”. E deu uma referência fácil de ser identificada. Volvidos alguns minutos, surge o Mestre e seu séquito. E, então, o repórter com voz firme, pede: “por favor, atenção, pedimos a todos que escutem. É alguém que vos quer falar”.

O Mestre com serenidade diz: “Senhores torcedores e senhores policias. Peço-vos um instante de atenção”. Suas palavras reboam no espaço como algo estranho e sobrenatural.

– Depois de um espetáculo prazeroso não se pode presenciar uma batalha entre irmãos. Caríssimos senhores, estou vendo pais de um lado e filhos de outro; maridos em lado oposto ao das esposas; jovens confrontando jovens. Isto não é de humanos. O amor a uma camisa de clube não pode ser maior que o amor a um ser humano.

A esta altura, todos, sem exceção, ouviam em silêncio.

– Quero lembrar que há uma única regra de boa convivência entre os homens: amai-vos uns aos outros. Se todos a seguissem com rigor não haveria disputas, não haveria crimes. Não haveria, sequer, zangas. Vimos há pouco um espetáculo de beleza, no estádio. Essa beleza deve ser procurada a cada instante, no mundo que nos rodeia. Ver e sentir o belo extasia a alma e nos torna feliz. Mas, parece que o homem abdicou da beleza para contemplar a fealdade. A beleza nos eleva; a fealdade (o mau uso da vida) nos rebaixa. Precisamos inverter estes valores. Deixar os ínvios caminhos que trilhamos e enveredar pela senda do amor.

Assim, ia discorrendo o Mestre quando uma voz esgoelada varou o espaço. Vinha de um torcedor, ocultado por uma árvore para não ser apanhado pelas balas de borracha.

– Não vem com esse papo, parceiro. Ninguém vai deixar de xingar os caras do time adversário. Não há coisa melhor do que abrir a boca e vomitar todos os palavrões conhecidos e inventados contra os jogadores, técnicos, juiz e até mesmo os do próprio time. A gente descarrega toda a tensão  e nervosismo e fica aliviado. Dá um sentimento de prazer como se se festejasse  um golo. É isso aí... não vem com essas baboseiras.

O Mestre ouviu tudo e quando o agastado torcedor terminou, ele, com brandura e alteando a voz para que todos ouvissem, continuou:

– Meus amigos: vivemos pela cabeça, a parte mais nobre do corpo. Por ser nobre está no alto e o seu interior – a porção mais importante – está resguardada em uma redoma óssea. Daí, partem os comandos para o resto do corpo. É, pois, vital que a cabeça se mantenha limpa para que a boca não se abra para sujidades. Quando tal acontecer seremos mais afetivos e mais compreensivos. Seremos mais humanos. E, se na boca aflorar um sorriso, tanto melhor, pois as palavras que se seguirem serão de suavidade e não de aspereza, de amor e não de ódio. E como disse um poeta, às vezes basta um sorriso para dar sabor à vida. Se desejamos ser bem acolhidos e bem tratados, sejamos acolhedores e reverentes. Se assim procedermos a vida será melhor e não haverá desacatos. Os que me ouvem, agora, estiveram, como eu, assistindo a um espetáculo. E quem vai a um espetáculo, é para fruir esse espetáculo. Do princípio ao fim. E de lá sair satisfeitos pelo prazer que nos proporcionou. Lembro a todos que a cobiça do primeiro lugar e a conquista dos três pontos estão na origem de todas as disputas. Devemos manter sempre o nosso cariz humano quando, nos espetáculos desportivos, se digladiam dois adversários. Os que estão na luta vão procurar vencer e é justo que assim procedam, desde que obedeçam às regras, tanto regulamentares quanto éticas. Os que, fora do campo assistem à disputa, cabe-lhes incentivar com aplausos, cantos, gritos, e frases de estímulo e tudo o que for capaz de contribuir para a vitória do seu grupo. E, no final, se vitoriosos, fazer a festa. Os perdedores, embora tristes, devem sair de cabeça erguida, se jogaram como lhes competia. Perderam no resultado, mas foram sócios na feitura do espetáculo. E devem merecer elogios porque aceitaram com dignidade a vitória dos seus opositores. Destes, deveriam ouvir  como homenagem o “víctis honos”, em honra dos vencidos.

Na quietação daquele momento, quando todos os olhares buscavam aquele homem falando com suavidade, o torcedor avinagrado e num esganiço, lança farpas contra o Mestre.

– Chega de conversa fiada, cara. Ninguém vai nessa de dar a mão ao próximo, ver no adversário um irmão, ter um sorriso na boca. Isso não cola mais, isso é palhaçada. Hoje, o que vale é a esperteza, o “jeitinho”, a engambelação. O resto é frescura...

Logo um sussurro se alastrou rapidamente. Vozes cada vez mais fortes se juntaram em desaprovação e uma atordoadora vaia fez calar o desabrido torcedor.

E, então, ouviram-se palmas. Um estrepitoso bater de palmas dirigido ao Mestre que se afastava do local, à frente de seu grupo. As dezenas de torcedores que, ainda, permaneciam no recinto, ovacionavam e cumprimentavam o Mestre ao vê-lo passar. Polícias, muitos com as  armas nas mãos, faziam um sinal de positivo com o polegar erguido.

Um casal que se afastava lentamente, ia trocando impressões sobre o acontecido e, um deles, comentava não ter, agora, mais dúvida sobre a força da palavra – “na verdade, a palavra tem mais força que a própria força. O episódio  trouxe-me à memória um poema que li e que dizia: os canhões não podem derrotar a ideia”.

 

                                                    

 

ROZELENE FURTADO DE LIMA (TERESÓPOLIS - RJ)

A PORTA

 

       Uma das manias de Samuel era sonhar acordado, usava a imaginação como se fosse uma ferramenta para lapidar a felicidade          em todo tempo livre, lá estava ele a sonhar a dar vida aos personagens que criava. Trabalhava como ajudante de caminhão. Vez por outra tinha a função de chofer. Num desses dias que tudo acontece, ele teve que dirigir o veículo, colocar e tirar a carga, pois o parceiro ficou doente. Uma propriedade muito antiga foi demolida e ele teria que levar o resto aproveitável para um depósito da firma. Num canto estava uma porta de madeira maciça com medidas fora dos padrões normais. Tentou pegá-la, mas a porta era muito pesada, teve que fazer um esforço sobre humano, amarrar com cordas, colocar uma base para acomodá-la no fundo da carroceria. Pela manhã Samuel comunicou ao parceiro que tinha ficado uma porta no caminhão sem descarregar. - Vamos ter que passar pelo depósito e deixar essa porta. – Vai ficar muito fora de mão, hoje temos que carregar areia. O encarregado da demolição quando foi avisado que teria pagar mais um frete por causa de uma porta, perguntou: - Você está precisando de uma porta? Pode ficar com ela para você, é uma porta grande desengonçada sem valor.  O rapaz disse para Samuel: - A porta é sua, no meu apartamentinho ela não cabe. Samuel descarregou a porta, colocou-a em pé no fundo do galpão e deixou para lá. Meses depois ele passou por aquele canto e bateu com o joelho com muita força na ponta da porta. Samuel dormia no colchão no chão e quando foi deitar não conseguia dobrar o joelho por causa da pancada na porta. Chamou o pai, fizeram quatro pilhas de tijolos, e a tal porta foi para cima das pilhas entijoladas e a cama ficou excelente. E a partir daí Samuel começou a ter sonhos interessantes que contava ao seu pai: - Pai, sonho que moramos numa casa muito rica, com jardim e tenho três filhos lindos que brincam com a minha mulher; você e mamãe estão por perto e felizes. – É preciso sonhar para poder realizar. Sonhar acordado é diferente. Primeiro vem o sonho e a ideia, a forma vem com o tempo e tempo depende da intensidade com se sonha. Todo sonho passa primeiro pela imaginação antes da materialização. Quem não sonha fica a mercê da casualidade, concluiu o pai de Samuel.

    O rapaz apaixonou-se, alugou uma casinha na mesma rua. Casou-se. A mãe resolveu fazer do quarto dele o quarto de costura. - Vamos tirar aquela porta de lá, ocupa muito espaço.  Resolveram cortar a porta ao meio para fazer um portão de entrada. Colocaram a porta para fora da casa, em posição para o corte, quando um raio de sol incidiu numa lateral da porta, faiscou um brilho irisado igual quando um brilhante é exposto à luz.  O rapaz percebeu que tinha uma pequenina fresta no lugar onde brilhava. Pegou o canivete e devagar com muito cuidado como se fosse um cirurgião, forçou a gretinha e viu que tinha uma tira de madeira de encaixe que foi cedendo à pontinha da lâmina. Saiu o fino, firme e comprido filete e que para o espanto deles, revelou uma fechadura dourada. Seu Carlos notou que na parte debaixo tinha um pequeno quadradinho. Mais uma vez a pontinha da lâmina do canivete funcionou. Retirado o pequeno pedacinho de madeira, apareceu a chavinha. Os dois admirados com tamanho engenho não poderiam supor o que teria debaixo daquela almofada de madeira que deveria medir 1,90cm por 1,70cm. A almofada nada mais era do que uma porta dentro da outra.  Passou um arrepio por eles quando viram a data perto da fechadura (MDCLXXIV). Com os corações descompassados levaram a porta para dentro e foram abrir no antigo quarto. Estavam sós em casa e num momento desses quanto menos pessoas estiverem por perto melhor, olhos demais só atrapalham e na maioria das vezes distorcem a verdade. Com a mão trêmula Samuel colocou a chave na fechadura, torceu lentamente, puxou devagar e suavemente. Abriram a porta almofada. Os olhos arregalados e as bocas entreabertas, num misto de pavor, susto e surpresa.  Não conseguiram fazer um som, as gargantas estavam apertadas de tanto assombro.  Nunca poderiam imaginar o que tinha dentro da rejeitada e disforme porta, que mistério ela guardava por tanto tempo! Toda descoberta vem acompanhada de uma mudança radical, mas aquela era demais! Mexeria com toda vida deles. Fecharam a almofada, isto é, a porta menor, trancaram, guardaram a chave no mesmo lugar, repuseram o colchão e saíram para o quintal. Que fazer agora, qual atitude tomar, com quem se aconselhariam? - Amanhã a gente conversa, não vamos falar nada para nossas mulheres, seria um peso muito grande para elas guardarem um segredo desses, comentou o pai. Na manhã seguinte, eles voltaram e conferiram o que tinham visto, era verdade mesmo! O mistério da modificação a alucinante magia do sonho irreal para o real. É preciso sonhar, reter o sonho por algum tempo na imaginação e soltá-lo no espaço para que encontre o templo da materialização. Uma estante, com várias prateleiras subdivididas em caixinhas de 15 cm. E as três últimas prateleiras com as caixinhas de 30cm. As pequeninas gavetas eram todas trabalhadas com o mesmo símbolo, parecia um brasão. Samuel puxou com muito cuidado a primeira gavetinha, tinha saquinhos de um material de seda finíssima, que protegiam anéis belíssimos com pedras trabalhadas, brincos, colares, broches, enfeites de cabelo, braceletes, correntinhas, medalhas e tiaras. Nas gavetinhas maiores brilhavam barras de ouro e duas coroas reais divididas em duas partes com abertura para encaixe. Tão lindas tão esplendorosamente faiscantes que chegava ofuscar as vistas num brilho intenso e surpreendente! E foram abrindo uma por uma. Moedas, muitas moedas grandes douradas. Depois que foram encontrados pelos bafejos da fortuna continuavam abobalhados e amedrontados. As imagens não saiam da cabeça, reluziam como se o sol cintilasse dentro do cérebro. Sem saberem o que fazer, o rapaz saiu muito cedo, e encontrou o pai no caminho. Que é que vamos fazer? O pai respondeu: - Peguei um anel bem desenhado e pensei em levar na joalheria e perguntar quanto vale. – Mas se ele perguntar como é que temos esse anel? - Vamos dizer que é uma joia que está em família há muito tempo, foi passando de geração em geração. O joalheiro quando examinou a joia ficou atônito: - é uma joia muito valiosa, como conseguiram? Eles falaram o combinado. - Acho melhor vocês irem a um joalheiro da cidade, eu conheço um que é gemólogo e especialista em análise de joias raras, foi meu professor, vou ligar para ele.

        Já estavam sendo esperados na joalheria da cidade. Depois de examinar a riquíssima peça o joalheiro falou:- Essa peça não tem preço, data do século XIII. E naquela época toda joia feita para a realeza tem incrustado o selo real, como tem nesse anel. Pertenceu a uma Casa Real e tenho quase certeza que é um o Brasão de um país nórdico. Vou entrar em contato com uma Embaixada que fica aqui perto.  Logo depois chegou um funcionário que os levou até o Cônsul que os conduziu ao Embaixador. Seriam avisados assim que tivessem uma resposta. E foi pedido a eles sigilo, o silêncio resseca a alma. Dias depois foram procurados e disseram que o tesouro encontrado pertenceu ao rei Dom Fulano... Que morreu numa guerra e a família refugiou se num país vizinho e nunca mais tiveram notícias deles.  Pai e filho cada vez mais temerosos e cobertos pelo preconceito da ignorância de ter em poder um tesouro real de tamanha importância resolveram mostrar a valiosa peça de madeira e contar toda a história daquela porta.  Se um anel já tinha movimentado tanta gente um enorme tesouro foi um verdadeiro estardalhaço. Joias que têm a qualidade de emudecer quem as olha. Terminada a investigação que envolveu especialistas, estudiosos e historiadores que chegaram à data em que um dos herdeiros chegou ao Brasil, construiu um castelo em lugar ermo e viveu sem grandes alardes. O valiosíssimo tesouro voltou para o Museu Nacional do país de origem onde permanece em exposição. Samuel e a família receberam uma recompensa em dinheiro que daria para viverem muito bem e uma quantia mensal para o resto de seus dias até a 10ª geração. O que Samuel nunca conseguiu entender foi: - Por que essa porta foi parar em suas mãos? Sorte, acaso, merecimento, destino, ou por que ele era um grande sonhador?

 

 

 

MEDALHA DE PRATA  

 

ANDRADE JORGE (CAMPINAS - SP)

PENSOU EM MIM?

 

Pensou em mim? Essa era a pergunta preferida que Lilica fazia ao seu namorado quando se encontravam. Ele respondia laconicamente: “Pensei”. Mas ela insistia:

___ Pensou bastantinho ou bastantão? Ele repetia a mesma resposta: “Pensei”.

Lilica que na verdade chamava-se Eliana era uma moça bonita, simpática, romântica, sonhadora, vivacidade estampada no semblante, e dona de um sorriso encantador. Ela conquistava todos que a conheciam porque era também muito prestativa, sempre solicita daquele tipo “pau pra toda obra”. Com todos esses predicados e dons inatos, buscou um curso onde se identificasse com a profissão, assim foi fazer Serviço Social.

Seu namorado era o Carlos Henrique, que Lilica chamava carinhosamente de Cacá. Ele era oposto de Lilica, metódico, reservado, detalhista e seu negócio eram as ciências exatas, calcular era com ele mesmo. Adorava matemática e física e seu desejo era ser um cientista físico, para trabalhar em projetos espaciais. E estava estudando muito pra isso.

Quem conhecia bem Lilica e Carlos Henrique ficava se perguntando: Como pode dar certo esse namoro? Pois é, o amor tem dessas coisas, juntarem opostos. Mas na realidade os dois se davam muito bem, porque Lilica apimentava um pouco a vida dele, e ele colocava um pouco de razão na vida dela, que era de muita, mas muita emoção.

Mas havia uma coisa que incomodava Carlos Henrique, quando Lilica o encontrava e vinha com aquela pergunta: “Pensou em mim?” E depois: bastantinho ou bastantão? Tinha vezes que ele perdia um pouco a paciência e respondia:

___ Pensei, oras! Sei lá se foi bastante ou pouco, sei que pensei!

Lilica ficava toda chorosa e dizia:

___ Poxa amor, não precisa falar assim, só queria saber se pensou em mim.

E assim viviam os dois, mas ninguém duvidava que fossem completamente apaixonados.

No terceiro aniversário de namoro deles, combinaram que iriam jantar num restaurante chique e depois pra fechar a noite com chave de ouro (nesse caso era para abrir a noite) um luxuoso motel, afinal mereciam. E assim aconteceu.

O jantar foi maravilhoso, com direito a um concerto exclusivo de violino, champagne francesa, flores e tudo mais. Saíram e foram para o Motel, que inclusive já haviam reservado. Estavam felicíssimos ao entrarem na suíte especial. Realmente a suíte era luxuosa, tudo de bom. Ligaram o som, música romântica, começaram dançar apaixonadamente, rosto colado, corpo igualmente, foi aí que Lilica toda amorosa fez a famosa pergunta:

___ Amor você pensou em mim hoje?

Carlos Henrique parou de dançar, olhou longamente para sua amada e delicadamente pediu pra ela sentar na cama, e falou

___ Ah! Minha querida vou te explicar direitinho o quanto penso em você. Li, o dia tem vinte e quatro horas e eu penso em você uma vez cada hora, portanto são vinte e quatro pensamentos. Você ta acompanhando o raciocínio? Então, cada vez que penso em você fico pensando por uns dez minutos, logo num dia penso em você catorze mil e quatrocentos segundos, ou seja, duzentos e quarenta minutos que transformados em hora teremos quatro horas. Isto significa minha querida, que num universo de vinte e quatro horas, penso em você 16% do dia. Entendeu?

Lilica balançou a cabeça dizendo que sim, estava estupefata com a exposição de Carlos Henrique. E ele ainda emendou:

___ Ta vendo como penso em você pra caramba! Lilica saindo do semitranse falou exultante:

___ Poxa amor! Você foi fundo! Mas gostei viu, agora sei o quanto você pensa em mim.

Abraçaram-se carinhosamente e o amor, desejo, paixão, excitação, fluíram e beijos cada vez mais ardentes foram sucedendo-se, e os corpos se entrelaçando. Até que Carlos Henrique, todo apaixonado, sussurrou no ouvido da amada:

___ Li o quanto você me ama? Ela respondeu de imediato:

___ Meu amor te amo mais que a distância da terra à lua, só que elevada ao cubo.

Carlos Henrique deu um longo suspiro e voltaram a se beijar novamente. Os dois já estavam chegando ao ápice, no êxtase total, no momento supremo, ela gemia de prazer e ele soltava uns “ahh!”, “ééé”, “hummm”. Lilica notou que a desempenho de Cacá estava diferente, explica-se, diferente para melhor, muito melhor, seu amado estava simplesmente levando-a as nuvens como nunca houvera feito antes, não que as anteriores tivessem sido ruins, mas essa estava acima da expectativa. Como diria um personagem de novela: estava “felomenal”. Até que ela numa entrega total gritou:

___ Agoraaaa, agoraaaa, agora amor... E ele respondeu: Simmm!,  Ahhhh! E com a voz embargada de paixão disse:

___ Amor, a distância é de 56 quatrilhões, 800 trilhões, 235 milhões de quilômetros entre a terra e a lua, elevada ao cubo. Agora sei o quanto você me ama. E a beijou ternamente.

Lilica depois de se recuperar totalmente disse toda apaixonada

___ Nossa amor foi demais! O que você falou sobre quatrilhões, trilhões...?

___ Ah querida! Cheguei ao resultado da questão que você me falou sobre a distância entre a terra e a lua só que elevado ao cubo, e disse que agora sei o quanto você me ama.

___ Amor você já sabia esse resultado?

___ Não sabia. Calculei enquanto a gente fazia amor gostoso...

Depois daquele dia os amigos de Lilica estranharam o fato dela sempre estar lendo livros de física, matemática, e quando perguntada respondia:

___ Nunca se sabe quando iremos precisar de uns exercícios... as ciências exatas auxiliam em tudo, em tudo mesmo, pode crer! 

E saía com aquele brilho no olhar.

 

FIM

                                

 

 

RENATO BENVINDO FRATA (PARANAVAÍ - PR)

O PÉ DE GARÇAS

 

O afoito tem a língua grande, rápida e ferina e, quando esta não lhe cabe na boca, a palavra sai entontecida e sem rumo a provocar desastre. Foi o que aconteceu quando duvidei de Pedrinho; falei asneira e mastiguei desculpas.

Estávamos no quarto ano do grupo escolar, com aulas de Português cuja professora tudo fazia para que aprendêssemos. Desenhava no ar com uma régua a beleza do que via, do que escrevia, ditava, recitava, cantava; uma graça.

No contexto de Português, portanto, Pedrinho era o que mais se destacava com sua aparência sisuda emoldurada pelos cabelos penteados com brilhantina e sapatos lustrosos de graxa. Mas ele ia além, enquanto nos limitávamos às lições de História, ele escarafunchava a Mitologia, e incorporava as personagens mais famosas, como se elas vivenciassem nossos momentos, trazendo para perto as figuras de Apolo, Hércules, Teseu e o exército de heróis e titãs que se relacionavam sistematicamente com o belo, com a força, com o poder, com a valentia, como a leitura da mitologia induz.

Para ele era tão fácil captar o que lia que, mesmo permanecendo sentado em sala de aula o tempo todo, parecia um de nós com a bola nos pés no campinho. Era de causar inveja e raiva. Enquanto ele lia e aprendia, nós corríamos... Pois foi esse o adversário que enfrentei por causa do título de uma redação. Cada um tinha a obrigação de ir à frente da turma e ler o que escrevera; e lá foram o João, a Mariinha, eu e outros tantos, até que chegou a vez de Pedrinho que manobrou as rodas da sua cadeira, postou-se firme, limpou a garganta para adocicar a voz e leu o título: - “O pé de garças”.

Foi o que bastou para que todos, puxados por mim, caíssemos em gargalhada com a sua estupidez: onde já se viu garça dar em árvore como laranja, mamão, goiaba? Pé de garças... ora veja...

- Não é fruta, é ave, seu burro! – gritei, deixando vazar minha raiva por ser ele mais inteligente que nós.

Então, entre as ordens de silêncio e pedido de respeito da professora, ele fechou o caderno, movimentou a cadeira para frente, olhou-me como se perscrutasse meu íntimo e, sem se empertigar, indagou:

- Nunca viram um pé de garças? Garanto que existe, fica num lugar mágico e tem um esplendor tão grande que, quem o vê com olhos da alma vai ficar estático com a beleza e majestade, encantado com o poder da natureza em demonstrar sua força e virtude. Estão convidados a vê-lo. Vamos?

Que alvoroço! Essas palavras bastaram para que meus companheiros gozadores se entreolhassem e baixassem os olhos à espera do pito, mas não foi o que aconteceu; a professora apenas disse:

- Tenho uma ideia: depois de amanhã faremos uma excursão ao sítio do Pedro. Quem topa?

Entre os ‘quero ir, mas minha mãe não deixa’, formou-se um grupo de nove meninos e meninas, com elas se encarregando dos lanches e nós do suco de laranja. Antes, o bilhete da mãe permitindo a aventura e o retorno depois do sol posto. No dia e hora marcados, oito se apresentaram com as permissões, lembrando que ao assinar a minha, tive a orelha entre os dedos e uma voz ríspida:

- Você vai, mas peça perdão ao seu amigo. Não vá estragar o passeio...

A professora chegou, conferiu os papéis, as mochilas dos lanches, fez um pequeno sermão de recomendações e seguimos. A casa não ficava longe e, ao chegarmos à varanda, já haviam servido café com bolo, momento em que ele me olhou de novo enxergando meus pensamentos. Não esperei que abrisse a boca e me adiantei:

- Pedro, desculpa pelo que fiz, foi de brincadeira...

Ele firmou os olhos, sorriu e estendeu a mão:

- Amigos, amigos, brincadeiras à parte. Ajude-me então, que o caminho não é bom...

Rapidamente engolimos o lanche, segurei com força os suportes traseiros da cadeira e rumamos carreador a fora, até um recanto cercado de mata. Ela era pesada naquele carreador esburacado, mas diante do carão ao lhe pedir desculpa e de sua mão branca de perdão estendida, qualquer esforço, por maior que fosse, valeria a pena. Pelo caminho aberto nas plantações, borboletas amarelas aos montes, brincavam seu esvoaçar gracioso. Havia vários blocos delas, aqui e ali na terra úmida. Quando nos aproximávamos, elas voavam ganhando a mata e rodeando-nos à certa altura, para retornar à tarefa momentos depois.

E dali até a beirada de um lago foi um pulo, difícil foi controlar a tagarelice diante dos insistentes pedidos de silêncio da professora, da mãe do Pedro e dele próprio, para não espantar as aves. E qual não foi nossa surpresa ao apreciar o descampado que se abria em meio à mata, e deparar com muitas, muitas garças palmeando o solo do lago. Elas se juntaram e, agrupadas, branquearam o ambiente. Pareciam bolinhas de papel, ou pipocas deslizantes porque andavam, enfiavam os bicos na água, traziam o peixinho, brincavam com ele ajeitando-o na base inferior e o engoliam, para de novo repetir o movimento. Outras, quiçá saciadas, ficavam encolhidas e se equilibrando numa das pernas tendo o pescoço enfiado sob a asa, dormitando ao sol da tarde.

- Vejam como o conjunto delas pinta a maravilha da natureza. Não é lindo? – Perguntou a mim. – O mais bonito é quando elas voam...

- É lindo sim – respondi sem melhor coisa a dizer. Fora estúpido e ele me dava o troco. E assim, bestificados com a visão estupenda das aves no lago e da árvore que seria sua morada, permanecemos admirando boquiabertos, em silêncio. De fato, lá na outra margem via-se uma árvore alta, com o tronco engrossado como uma barriga avolumada.

- Que árvore gorda! – Disse Mariinha, ao que a professora se adiantou:

- Ela reserva água para se proteger da seca, por isso incha...

Era uma árvore diferente porque tinha a copa careca, com flores e folhas aparecendo somente abaixo da calva de galhos, tal qual a cabeça do Frade Zezé, nosso pároco. No caso dela, as laterais de folhas de um verde marrento, e flores grandes cor-de-rosa simbolizaram os cabelos dele, cortados de tal forma que o disco pelado lustrava o cocuruto, com os cabelos aparecendo pouco acima das orelhas. Nela havia mais flores que folhas, o que dava uma conotação estupenda do contraste entre as cores e à similitude do conjunto. No todo, pelo que consegui entender, se sobrepunha às outras do capão de mato, no entorno e proteção do lago. Parecia ser a chefe das árvores.

- Elas dormem lá? - Perguntei curioso me referindo às garças.

- Moram lá – respondeu - e de tanto pisarem nos galhos as folhas não crescem, daí a calva; por isso o nome ‘O pé de garças’, porque juntas parecem frutas no pé, tão lindas ficam quando se põem a dormir encolhidas, parecendo bolas brancas. Vai ver.

Meus colegas e a professora se viraram para mim com olhos de repreensão; mas entre o sentimento de vergonha e o arrependimento, vimos quando a primeira garça abriu as longas asas, correu sobre a água e alçou vôo até um dos galhos da árvore. Lá chegando gazeou, talvez para informar que tudo estava bem.

Logo mais, outra fez o mesmo; e outra e outra até que várias saíram e ficaram rondando a copa à espera da acomodação das companheiras, para somente depois ocuparem seu galho. E assim foram se juntando, juntando, até que a última garça deixou o lago e se espremeu entre elas. Ele então acionou uma das rodas da cadeira e, de frente ao grupo disse com simplicidade:

- Quis contar isso que estão vendo e dizer que não existe maior harmonia que a natureza quando ela age sem a nossa interferência. Veem? Não existisse o lago que produz alimento e nem a árvore como abrigo, por certo não haveria garça. Esse lago é natural, nasceu das águas da mina que brota logo acima e também ganha reforço de outro ribeirão que vem pelo mato trazendo os peixes. A água escorre para essa depressão de terreno e forma ambiente especial para que elas fiquem e se alimentem; se acasalem e se sintam livres. De vez em quando partem, demoram um pouco, mas logo voltam... e isso acontece na época da reprodução dos peixes. Assim elas não comem as mamães-peixes e poderão voltar sempre que quiserem, pois terão peixinhos à vontade.

- Caramba, meu! – disse alguém – isso é massa!

Mas Pedrinho novamente deu um sinal e continuou:

- São parentes do pelicano que vive próximo do mar em quase todos os continentes, de asa a asa medem cerca de 90 centímetros, são identificadas pelas penas brancas, pernas e dedos pretos, o pescoço comprido, o bico longo e amarelado e a íris bem amarela. O que ela faz de ruim? Nada, apenas come e dorme; e fornece egretas, penas fininhas que servem para enfeites de roupas.

Eu quis falar, mas novamente interrompeu:

- No caminho vocês viram borboletas, estavam no solo se alimentando e, ao mesmo tempo, juntando húmus nas patas, voaram quando nos aproximamos por não saberem se lhes faríamos mal, para voltar depois à mesma tarefa quando nos distanciamos. Que fazem de mal as borboletas? Nada, apenas comem, bebem e, ao fazerem polinizam as flores possibilitando que nasçam outras flores e outras; e dessas as sementes dos nossos alimentos. Então, para fechar meu pensamento, nós humanos é quem somos intrusos, produzimos lixo, poluímos o mundo, fabricamos venenos; a natureza não. E, quando dermos conta disso poderemos ver por inteiro a sua beleza. Por enquanto resta que sabendo quem nós somos e o mal que produzimos à natureza, consigamos enxergá-la com os olhos da alma, como disse ontem, porque se não colocarmos beleza em nossos olhos, jamais veremos o fascínio que o panapaná produz, porque delicadamente, conjuga a exuberância cromática do arco-íris nas asas em movimento à leveza graciosa dos insetos. Panapaná é o coletivo de borboletas que em tupi quer dizer criatura de pétalas aladas. O coletivo de gente, como nós, chama-se grupo, e o de garças é bando. É isso, a redação queria dizer isso, mas acho que ficou melhor.

Eu, que estava do seu lado, peguei sua mão e a apertei como se aperta a mão de um amigo, pelo arrependimento da brutalidade, pela inveja do seu conhecimento, talvez porque tenha encontrado na figura fraquinha sobre a cadeira de rodas o gigante que a força dos músculos não tinha serventia, mas portava a força da sabedoria embutida na cabeça, afinal, a aula de dignidade e de hombridade que nos deu, especialmente a mim, foi o melhor que podia merecer. Antes que alguém dissesse alguma coisa, a mãe dele se aproximou e lhe dando um abraço, disse:

- Tudo foi muito bom, querido, muito bom, não precisava ser tão bom...

Ao se virar, no entanto, vimos seus olhos com lágrimas. Mas por que chorava se havia gostado?

Então professora se aproximou, passou a mão na minha cabeça e na cabeça dele e disse:

- Hoje meninos, tivemos exemplos que deverão caminhar conosco a vida toda: o primeiro deles é a consciência de ter errado e a assunção do erro seguido de pedido de perdão. Entenderam?

- Sim, - falamos em coro.

- O segundo exemplo foi o perdão. Quando o perdão é dado também com consciência, toda chateação que ele provocou some, como volatiliza o éter sob o sol quente. Assim fez o Pedrinho. Não fez?

– Fez – repetiu-se.

- O terceiro exemplo está na disciplina de Pedro. Viram quantos livros ele tem em casa? Perguntem quantos ele já leu: quase todos! Por isso seu boletim traz notas dez de cima a baixo, porque ele é disciplinado e nos ensinou maravilhas, resultando no encantamento do passeio enfeitado por borboletas, pelas garças e por nós que somos amigos, formando um grupo de dez mosqueteiros.

- Mosqueteiros? – Perguntou um menino.

- Sim, lembra-se da história dos Três Mosqueteiros, escrito por Alexandre Dumas, que contei outro dia? Pois hoje nós formamos um grupo de dez: vocês, o Pedro e eu. E sabem o que os mosqueteiros da história faziam? Vários levantaram o braço.

- Digam o que faziam.

- Tinham o lema: Um por todos e todos por um!

- Isso quer dizer o quê?

- Que se ajudarmos nosso colega ele nos ajudará.

- Sabem o que significa isso?

- Não!

- Solidariedade. E o que é solidariedade? É um compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas às outras e cada qual a todas. Nunca mais seremos um somente, - ergueu um dedo - mas um grupo de dez – abriu todos os dedos. Entenderam?

- Que legal!

Demos as mãos numa grande corrente e nos pusemos voltar à casa de Pedro.

A nossa amizade se consolidou a ponto de me levar a mil aventuras nos dias seguintes, e de ficar em meio aos seus livros chatos de ler que ele devorava como glutão, e à sua estupenda coleção da Enciclopedia Barsa, de onde catava informações, e essas aventuras nos levaram também às escapadas pelo quintal empurrando a cadeira ladeira acima e ladeira abaixo, com objetivo de que ele brincasse um pouco, e se esfolasse em pedras e espinhos como eu. E Pedro, escapulindo da disciplina aceitava as loucuras, até que um dia disse querer ver de perto um ninho de passarinho, sobre o qual havia lido que a fêmea carregava um ramo no bico para um galho, e lá ia juntando outros ramos em trança até compor com eles a pequena cova onde poria ovos, e onde passaria mais de vinte dias sobre eles alimentando-se e bebendo pouco, até eclodirem soltando os filhotes.

- Você quer que eu traga um aqui?

- Não, quero que você me leve lá.

 - E eu aguento?

– Tente, ué!

Depois de seu balançar de ombros, tomei-o às costas e principiei a subida, mas não consegui. Então corri ao barracão de ordenha, peguei um laço de couro, subi na árvore passando a corda num galho forte, desci, levei Pedro até ali, amarrei com força uma das pontas da corda em volta de seu tórax, peguei a outra perna da corda e danei puxar.

Em princípio ele se assustou por ver pendurado, mas forcei mais e a corda cedeu voltando a correr e ele a subir, até que extasiado, gritou:

- Pare, estou vendo! Olha que coisa maluca! É obra de engenharia, rapaz, esses passarinhos são verdadeiros artistas! E o ninho não se solta, fica preso...

E aí a corda começou a esquentar minhas mãos e fazer escorregar os meus pés pelo solo liso e eu fui cedendo aos poucos e ao muito ficando apavorado; e ela danou a escorregar louca, queimando minhas palmas. Então, ele gritou:

- Irra! Irra! Posso voar como Mercúrio, o mensageiro de Zeus! Posso ser Apolo, o deus das alturas; posso ser Hércules, o herói das sete maravilhas. É gostoso!

– Pare! – gritei – não suporto seu peso...

Mas ele não ouvia, danando a rir desbragadamente, alucinantemente endoidecido com a aventura, como um espantalho com vida a se agitar lá em cima. E, sem mais poder conter seu peso e temendo o desastre, forçando a corda com as mãos em chamas, tentei voltar para perto da árvore para ampará-lo, mas ele passou direto, estatelando-se no chão.

- Puta merda! – gritei levantando as mãos à cabeça - matei ele!

Instantes que pareceram eternidade, ele se virou e riu, ainda com a cara de enlouquecido, lambrecada de sangue e a roupa suja de terra.

- Vamos outra vez? – Perguntou com seus olhos azuis faiscando felicidade.

- Sé besta! – respondi.

Em ato contínuo e tremendo de medo, corri ao barracão levando o laço e trazendo de lá um pouco de água, passando a rapidamente lavar, com minha camisa, sua cara de terra ensanguentada. E ele, doidinho de pedra pulava no chão, de alegria.

Cara, quase matei você! Vê, está todo esfolado!

- Ah! – ele disse dando de ombros - é marca do batom do chão, só que mais forte um pouquinho... – voltando a rir e a rolar especialmente onde a água da lavagem do rosto fazia poça.

- Jesus! – Ouvimos de alguém; era a mãe dele que vira a cena e veio depressa.

Eu quis correr, mas com o Pedrinho se estrebuchando, fiquei para o pior.

O que aconteceu? Você caiu? Jesus, meu filho, está machucado?

– Não, mãe, - ele respondeu com os dentes vermelhos – voei. Posso voar, pude tocar as nuvens, pude ver o ninho de perto, ser o Apolo que tanto queria ser!

Então ela o abraçou tirando-o do chão sem se preocupar com o barro no vestido. E com ele nos braços, estendeu a outra mão no meu ombro num abraço e disse emocionada:

- Vamos, a graça de Deus está conosco: meu filho aprendeu a rir... a ser menino, bendita hora em que deixou de lado os benditos livros...

Ela não ria como da outra vez, estava feliz por dentro, dava para sentir... Levou-nos, passou mercúrio cromo no rosto dele e cânfora em minhas mãos. Deu-me um lanche gostoso e me mandou de volta.

Falando em Pedro, confesso que com as suas lições de vida, compreendi que possuía atributo de um poeta, embora fosse menino; e que dizer poesia é voar fora das asas[1], é ir além de onde as palavras conseguem alcançar, porque entre a sensibilidade e o seu expressar há uma distância quilométrica. Não basta dizer poesia, é preciso interiorizá-la, senti-la, misturá-la ao sangue, transformá-la em energia, vivê-la em completa sintonia, para depois deixá-la vazar pelos poros com o suor, sair pela voz, pela respiração e pelo pulsar do coração, pelos dedos na tinta da caneta ou nos toques do teclado. Ele tinha esse predicado; nascera com ela incrustada, transpirava e exalava seu perfume, gesticulava e a dizia com facilidade de invejar, sem ter ao menos composto verso qualquer. Mesmo estando morto abaixo da cintura em razão da poliomielite, e preso à sua pesada cadeira de rodas que limitava movimentos, dizia coisas que nós, meninos sãos de corpo e alma e de agilidade de serelepe jamais fomos capazes imaginar, quanto mais sentir ou pensar. Seus olhos azuis tinham as cores da sensibilidade na tez enfraquecida e esta amoldava o sentimento de tal forma que qualquer frase que dissesse, soava diferente, como soprada pelas musas das canções para Zeus, no Monte Olimpo.

No dia seguinte ao chegar à escola, estava penteado e sem brilhantina. Olhou para nós e disse com gozação:

- Sabem o que descobri? Que a casa da gente é como a gente: tem pernas como nós, só que fincadas no chão; tem os olhos que são as janelas, a boca que é a porta[2], o telhado que é sua cabeça e tem até fiofó... que solta pum de fumaça pela chaminé... – E riu tanto que deixou a turma toda atônita. Havia se tornado um de nós.

Pois bem, o tempo, esse vento ingrato que sopra nossa vida a seu bel prazer, tirou-me daquela escola e acabei perdendo o contato com a turma. Hoje, de cabelos brancos e ralos, olho meu passado de cima de uma escada; os degraus do ontem sustentam aquele que me apoia, para lembrar as criancices que vivemos. Quanto a vivemos, meu Deus!

Dia desses voltei àquela cidade e estava mudada; as pedras das ruas não reconheceram meus sapatos; eram outras, sufocadas e angustiadas pelo piche. Procurei pelos amigos de ontem e os encontrei, alguns pançudos de prosperidade, outros desdentados de pobreza, mas com cara de amigos e isso foi bom. Indaguei por Pedro: me disseram que há muito se mudara para o exterior, foi se aperfeiçoar em filosofia, e nunca mandara notícias.

 - É... – meditei – Pedrinho deve estar filosofando e poetizando em inglês, francês, alemão, árabe, japonês, mandarim, hebraico ou grego, e deve estar compondo poemas que são representados pelas musas a Zeus, porque ele é capaz, é capaz de tudo... até de voar, beliscar bunda de nuvens, viver Mercúrio, Apolo, Hércules, Teseu... 

Perguntei então sobre seu sítio e a resposta se estampou em meu rosto como uma demão amarela:

- Virou cidade – disse um.

Bairro de ricos – disse outro.

– Uma beleza – complementou o terceiro.

– Acabou tudo...

Então, tomado de indignação, pedi licença e despistei; não adiantaria reclamar; apenas manter registrado o que Pedrinho dissera naquele dia de visita ao lago, que a natureza é homogênea e mantém seus seres associados; e o exemplo estava lá com as garças se alimentando e ao mesmo tempo alimentando os peixes e o lodo com seus excrementos, na simbiose que só a natureza sabe fazer.

Na minha mente um pano preto desceu como a cortina do fim de um espetáculo, mas nela não estava escrito The End dos fins dos filmes americanos; havia um resto de fita sendo passado.

Eram as máquinas possantes de alguma empreiteira com suas majestosas e carrancudas lâminas, pás e colheres destroçando o capão de mato e matando a paineira careca como se fosse o monstro do Lago Ness.

Eram homens com seus aparelhos modernos sufocando o riozinho do meio do mato e colocando torniquete na garganta gelada da mina cristalina que, juntos, abasteciam o lago.

Eram esses mesmos homens com suas máquinas mortíferas sangrando as águas na outra ponta, até que todo o lodo aflorasse e se expusesse ao sol para morrer de calor; e o milhar de peixes aos pulos, sufocados à procura desesperada do oxigênio que lhes faltava nas guelras, para tudo ser sepultado por centenas de caçambas de terra trazidas sabe Deus de que jazida.

E as garças em bando sobre uma árvore careca? E os panapanás transportadores de húmus?

Bem, esses, a gente ainda pode ver em cartões postais... ou no Google do computador. São os tempos, são os ventos, são os homens...                               

 

 

RENATO BENVINDO FRATA (PARANAVAÍ - PR)  

IPÊ AMARELO

 

O dia nasceu resplandecente ao som de meia dúzia, ou de oito ou nove bem-te-vis que na sua língua estridente e na maior algazarra cantavam a beleza do amanhecer. Parecia que se juntaram apenas para dar bom dia ao dia. Quando ela mal descortinou a janela, o sol recém nascido embarafustou-se por vãos entre nuvens e focou num único ponto o raio de sua luz: o ipê-amarelo do jardim que naquela noite se perfumara em silêncio e se abrira todo em flor. Fizera-se uma maravilha de ser visto. E sentido. Um lindo leque reluzente aberto a mostrar-se imponente. No momento em que o êxtase se fez presente e lhe tirou um espasmo na respiração, não pôde conter um sorriso pelo enlevo de que foi tomada. A projeção da luz solar em facho, como a de um grande holofote projetado sobre o ipê, conferiu-lhe uma visão de vitrais, tão perfeita e bem acabada. O jardim se enfeitara com as flores de um amarelo vivo que contrastava com as cores das demais plantas, se sobrepondo a elas num esplendor só seu. Não resistindo em observá-lo apenas pela vidraça, abriu a porta e recebeu um lanço de brisa fria que lhe refrescou o sorriso, despenteou-lhe os cabelos e tentou levantar sua saia. As mãos, ligeiras, porém, grudaram-se nas coxas e impediram a má criação eólica. Pestinha! Teria dito ao vento que se escafedeu casa adentro e se aquietou. Depois, outra passada de dedos ajeitou a quase gadanha recolocando os cabelos sobre as orelhas. Arrumou os chinelos nos pés, pisou na grama, aproximou-se da árvore, alisou-lhe a casca e se viu sorrindo. Ainda com o mesmo sorriso que lhe brotara quando abrira as cortinas e a vira florida como a convidá-la para fora. - Lindo você está meu ipê. Simplesmente maravilhoso! Obrigada pela florada. Disse em voz alta. - E deu umas tapinhas na casca como afagos de contentamento que os amigos trocam quando se encontram. E fazem festa. É claro que outras floradas anuais já haviam acontecido, mas nenhuma como a de agora com esse encantamento e desenvoltura. Cachos e cachos de amarelo-ouro pendiam envergando os galhos e se agraciando com a brisa fria que acariciava suas pétalas em corneta. Olhou para os lados e viu somente casas carrancudas com seus gradis de ferro batido fechados com trancas, que mais pareciam cenhos severos e preocupados com a violência que grassa nossa vida nesses dias. Coisa triste dessa realidade que obriga a que sejamos prisioneiros da insegurança, sem que nossas autoridades movam uma palha para a reversão do problema. Ao que parecia, o barulho alegre dos bem-te-vis não teria sido capaz de despertar os vizinhos e fazê-los se levantar para ver o dia e admirar seu ipê sendo abençoado pelo sol nascente, o que era uma pena, porque visão como aquela do sol derramando seus fachos matinais como um flash interminável sobre as flores amarelas refulgidas, dificilmente iria se repetir. Não tinha ninguém dentro da sua casa que pudesse sair e compartilhar tal beleza: o marido se fora para os céus; e os filhos ganharam asas e voaram para os leitos de suas esposas em busca da proteção do amor e da vida. Assuntou mais um pouco torcendo para que alguém abrisse alguma janela e sentisse o mesmo prazer que a fazia vibrar e se enternecer, mas nada de novidade aconteceu. Somente a volúpia do vento continuava a despentear seus cabelos e a soprar por teimosia de baixo para cima a saia de algodão. Sentia-se uma felizarda com a visão e ao mesmo tempo entristecida, pois queria, mas não podia compartilhar a beleza com os demais. Estava só. Voltou-se para a árvore e a abraçou cingindo-a por inteiro. Era o mínimo para dar vazão aos doces sentimentos. A casca áspera com suas saliências marcou-lhe a pele fina, mas ela não se importou. O incômodo do contato da pele com a rusticidade da casca era de somenos importância em relação à beleza do instante que vivenciava. Sabia que a florada do ipê é efêmera e que dura pouco mais de um dia, mas sentindo que precisava gozar aquele prazer, deixou-se ficar. Recordou-se nesse pouco tempo de reflexão, do dia em que o plantara, trazido que foi pelo marido em uma pequena caixa de papelão. Era apenas um brotinho inseguro de pouco mais de dez centímetros preso a um pequeno e duro torrão que, não tendo força para preservá-lo além da germinação, deixou que suas raízes finas saíssem da terra e balançassem no ar a procura de sobrevivência. Buraco feito, adubo de galinha com um pouco de cinza para fazer-lhe a cama de nutrientes, muita água fresca que foi absorvida por ela e pelo solo, a plantinha logo pegou viço. Cresceu o ipê sendo escorado por uma vara de bambu, até que já forte, cheio de galhas e independente de tratos especiais, passou enfrentar sozinho a vida, e, como fora plantado no jardim, sempre recebeu água fresca na medida, daí o luxo empoado do floral que agora orgulhosamente exibia. - Puxa, vida, quanto tempo se passou! Exclamou quando se deu conta de que os anos fluíram tão rápido. - Quinze, vinte que isso acontecera? Não se lembrava. Apenas permaneceu ali agarrada à pele cascuda do ipê-amarelo que lhe enfeitou o dia e deu àqueles momentos graça e beleza, além de proporcionar que seu brilho intenso, aliado ao do facho de luz do sol, penetrasse seu âmago e deixasse mais pura sua alma de mulher madura que tem na casa de moradia seu forte, seu aconchego, segurança e seu destino. E por que não dizer, seu mundo? Assim ensimesmada e sem que se apercebesse, um canudo lanceolado amarelo de flor se desprendeu lá de cima e desceu, circulou no ar e se enroscou nos seus cabelos despenteados. Coincidência, ou teria sido propositalmente depositado ali pelo vento como uma troca muda de carinho do ipê em retribuição aos cuidados e desvelo a si dedicados? Ouvira um dia que os olhos são a entrada pela qual a beleza penetra sem pedir licença para encontrar a alma e fazê-la pura; e que as palavras em forma de escrita que possam brotar desse encontro são fotografias instantâneas do momento vivido, e assim devem ser preservadas eternamente. Aquele instante mágico entre ela e a natureza, pois, foi guardado como um registro fotográfico que iria ser levado para a posteridade com as demais coisas boas que lhe aconteceram na vida. Digamos como um álbum de boas recordações. Felicidade seria isso? Envolver-se sozinha com a resplandecência do sol nas flores de um ipê numa manhã de fim de inverno? Não teve resposta. E nem precisava. Apenas continuou a sorrir. Já dentro de casa, na lida comum com os utensílios, sem esquecer o que lhe acontecera naquela manhã inusitada, pôs-se em dúvida entre o guardar para si o que vira e vivera e dar o fato por encerrado a exemplo de tantas coisas que lhe aconteciam e que dormitavam na solidão de sua viuvez, ou se deveria descrever num papel a extrema felicidade que lhe foi oportunizada pelo seu ipê, com direito até de ganhar uma flor-corneta perfumada para os cabelos. Essa ficou sendo a questão. Pensou, pensou, mediu prós e contras e decidiu: passaria para o papel a experiência sim, nem que o texto, à sua maneira, feito às pressas, contivesse alguns erros de grafia ou de concordância e não tivesse o cuidado e o esmero de uma escritora quando se põe a editar suas obras. Faria da mesma forma como redigia suas listas de compras de supermercado ou suas receitas de bolos e pudins, copiadas das embalagens de trigo e de açúcar. É, faria isso. As limitações de cultura, a pouca prática com a redação e o contato não muito constante com a literatura não a impediriam assentar no papel suas impressões. A manhã fora muito linda para ser guardada apenas na memória, e seria ato egoísta seu não contá-la, coisa feia que não concebia. Então escreveria de maneira simples e o mais rápido possível para que as lembranças não fossem sendo apagadas com o passar dos dias por consequência da idade. Tentaria botar no papel de uma forma objetiva para que se e quando o registro fosse lido por alguém, pudesse servir de aviso e até de alerta, chamando a atenção para uma resposta que muitos procuram e que por julgarem-na complicada, acabam por não encontrá-la: o significado de felicidade. Pois ela é muito simples, calada, humilde e feita de instantes. É a sensação plena de satisfação e de equilíbrio que vem despida do sofrimento e da inquietude que a vida traz com suas sinuosidades, calosidades, baixios, rampas e cumes, dificuldades e amenidades. - A felicidade é feita de momentos! Está aí a resposta que tantos procuram, batem cabeça e se perdem na insatisfação. É feita de momentos pequenos, grandes, médios, não importa. Vividos a dois, a três, a mil, ou até mesmo pela pessoa sozinha, como no seu caso. Basta que se tenha o coração e a mente abertos para enxergá-la e recebêla; e haja disposição para aceitá-la, absorvê-la e tê-la como companheira de vida, como esse observar da florada do ipê-amarelo numa manhã de sol solta no calendário, por exemplo. - Simples e linda! Retrato fiel da natureza para ser curtido. Nessa ânsia de marcar o seu propósito, pegou a caneta, um papel e escreveu: O dia nasceu resplandecente ao som de meia dúzia, ou de oito ou nove bem-te-vis......

 

 

MEDALHA DE BRONZE

 

CORACY BESSA (SALVADOR - BA)

O CAVALO DE CRINA AZUL

 

         No começo, ao perceber que existia, ficou muito confuso. O que era existir? Não sabia, exatamente, mas tinha consciência.

         Primeiro, percebeu que quase não tinha peso, pois o líquido em torno dele o pressionava tão suavemente por todos os lados, que era como se não houvesse nada em volta — como se estivesse solto no espaço. Era uma sensação gostosa, morna. Depois, se deu conta de que podia se movimentar em todas as direções, mas, ao mesmo tempo, era como se não saísse do lugar — nada mais havia além daquele líquido. Pensou que fosse o primeiro e único ser no mundo. Mas, o que era o “mundo”? Não tinha a mínima noção do que fosse, porém, tinha a certeza de que existia — tanto quanto ele próprio.

         Engraçado: parecia-lhe já saber uma porção de coisas que, no entanto, não conhecia. Entretanto, sabia que existiam. Era como se, antes de existir, houvesse uma programação de conhecimentos que lhe seriam entregues no momento em que passasse a existir.

         Súbito, passou a perceber algo diferente: eram sons. A princípio, confusos, mas, com o passar do tempo, começou a aprender a distinguí-los, embora parecessem sempre longínquos e não soubesse de onde vinham. Um dia, surpreendeu-se produzindo um som: abrira a boca, entrara-lhe um pouco daquele líquido em que morava e, espontaneamente, o engolira, fazendo “glut-glut”. Daí em diante divertia-se, eventualmente, fazendo “glut-glut”.

         Certa vez foi sacudido, subitamente, em todas as direções: ficou apavorado, sem saber o que lhe acontecia. Tudo não passou de um grande susto, ao notar que nada se modificara nele. Percebeu então que, não apenas “ele” podia se movimentar, mas, também, o “seu” mundo se movimentava — às vezes, suavemente, outras, com brusquidão. Deixou, então, de sentir medo quando essas coisas ocorriam. Entretanto, continuava intrigado.

         De quando em vez, tinha a impressão de que sonhava com coisas que haviam acontecido e outras, que iriam acontecer.

         Ultimamente, vinha tendo a impressão de que o “seu” mundo estava diminuindo cada vez mais — o espaço em torno de si era progressivamente menor. Ficou preocupado, até perceber que “ele” é que estava ficando cada vez maior. Notou, também, outras novidades: sua pele — que era rósea, com riachos azulados parecendo uma rede de malhas irregulares — estava coberta por uma camada de pêlinhos lustrosos, brancos, com manchinhas escuras. Em sua cauda havia, na extremidade, um penacho de pêlos longos que flutuavam no líquido ambiente. Suas patas tinham, agora, uma carapaça lisa, dura e escura. Sentia também que, em sua cabeça, seguindo em direção às costas, algo novo havia — mas não conseguia identificar o que era. Ficou bastante intrigado e procurava ver, contorcendo o pescoço, mas nada conseguira. Que enigma era aquele? Já conhecia todo o seu corpo, podia vê-lo — exceto, justamente, no local onde acontecia aquele mistério. Sua curiosidade era tão grande que não ficava mais sossegado, quase não dormia, tentava dar cambalhotas para ver se, assim, conseguia visualizar a parte alta da cabeça e superior do pescoço — sem resultado. Começou a ficar angustiado, sentindo necessidade de mais espaço, pois, àquela altura, quase não se podia mover: o líquido em que vivia já era muito escasso.

         Então, para piorar a situação, passou a sentir uma pressão estranha, cada vez maior — como ondas que o comprimiam por tempos cada vez mais longos — deixando-o, simplesmente, aterrorizado. Seu coração batia mais e mais rápido. Um ruído surdo — como de tempestade ao longe — o envolvia todo, latejando violentamente em seus ouvidos. Sentia-se paralisado pelo medo e pela falta de espaço, com as patas dobradas comprimindo o seu tórax e o abdome.

         Subitamente, ocorreu-lhe uma idéia louca: “Preciso sair daqui, preciso fugir, preciso respirar, preciso de ar, ar, AR!”

         Não teve tempo de raciocinar mais nada: lançou-se, de vez, na direção em que estava a sua cabeça e sentiu que algo se partia, rasgando — e o resto do “seu” líquido escoava por aquele túnel que se abria à sua frente. Totalmente em pânico, escorregando e sentindo-se empurrado pelo que lhe pareceu uma onda gigantesca, caiu, aos trambolhões, num outro mundo. O impacto no solo o deixou totalmente aturdido, até esquecido daquele desejo intenso que o impulsionara pouco antes: respirar!

         Tudo se passou muito rápido: sentiu um frio intenso e um peso enorme sobre o seu tórax — quase tão grande quanto o que sentira nos momentos finais em que habitara o “seu” mundo — ao tempo em que algo pesado, morno e áspero movia-se sobre suas narinas, sugando-as.

         Despertando bruscamente do seu estupor, dilatou o tórax, inspirando algo que lhe penetrou os pulmões de uma maneira violenta — quente e frio ao mesmo tempo — parecendo que iria rasgá-lo por dentro: o ar!

Sentiu-se aturdido: essa foi a emoção mais completa e complexa que sentiu em toda a sua vida — a dor-prazer da primeira respiração.

Completamente exausto, deixou-se ficar molemente onde estava, respirando suavemente — e uma sensação de bem estar infinito arrastou-o para o sono.

Despertou com uma algazarra de vozes infantis que se aproximavam.

Estupefatas, as três crianças pararam junto ao estábulo, enfiando as cabeças pelas traves do gradil, até que o mais velho delas disse, incrédulo: “Mas ... é um cavalinho de crina azul!”

Sorrindo dentro de si mesmo, o cavalinho adormeceu novamente.

 

 

EM CRÔNICA

 

MEDALHA DE OURO

 

ALFREDO NOGUEIRA FERREIRA (FLORIANÓPOLIS - SC)

FASHION? E POR QUE NÃO MODA?

 

Quero abordar um assunto que está sempre na consideração das gentes –– a moda. Porque moda é moda e todos gostam de andar na moda.

Mas, interessante, não vejo quase o termo “moda” indicando essa faceta tão referenciada por muitos. O que encontro estampada nos órgãos de comunicação social, nas vitrinas das lojas, nas faixas celebrando o desfile de modelos, é a palavra “fashion”.

Se vou falar em moda, não devo entrar em considerações de ordem linguística. Apenas, para esclarecer, quero avivar que o “portinglês” (palavra que usei nos idos da década de oitenta) está mais forte, mais presente do que nunca. Incompreensível numa pátria em que sua lingua é premiada com um Nobel e que, nessa mesma língua, foi escrito que a “língua é a nossa Pátria”. Não vou adiante, porque o tema é a moda e na moda vou me fixar.

Andar na moda é a ambição máxima da maioria e o andar na moda, hoje em dia, não tem a ver só com a roupagem que se veste. Vai além, muito além. Atinge a cabeça, o rosto, os seios, o “traseiro”, o calçado, “et reliqua”.

A moda! Que grande tirania para as “massas”. Mas dessa tirania ninguém retruca, ninguém esperneia. Ao contrário, enfuna as velas, põe-se a favor do vento e em clangores vibrantes, rende-se à “ditadura” da moda. E, então, correm na ansiada busca do produto da moda.

Há assim, uma verdadeira mutilação do normal. O “normal”, de que falo, é o indivíduo reger-se por normas próprias, adequadas ao seu estilo de vida, à sua maneira de ser, ao modo de pensar e de olhar o mundo. Quero dizer que, no tocante à moda (que agora, infelizmente, não é mais moda, e sim, “fashion”) a regra é vestir-se e calçar-se e pentear-se e adornar-se, segundo as suas conveniências e gostos pessoais. Teríamos, então, no que tange à moda, uma sociedade de rostos de homens, de mulheres, de crianças, de jovens, de velhos, vivendo adequadamente segundo a idade, o sexo, o porte físico.

Diante desse insopitado desejo de referenciar a moda, uma questão aflora: por que tal acontece? Será a força do propagandismo, da publicidade exacerbada? Afinal, sempre existiu a moda. Sim, é verdade. Mas, essa moda, praticamente, se restringia às roupagens, numa palavra, à maneira de vestir.

Agora, como disse atrás, há modas que afetam os outros aspetos do ser humano. Chegou-se à conclusão que o indivíduo não é notado apenas pelos trajes que exibe. O rosto que ri, e chora pode ter e tem um grande poder de atração. É por ele – quase sempre – que tudo começa, em se tratando de relacionamento amoroso. Então, nada melhor que aformoseá-lo para atrair o olhar de outrem. E hoje, com a cirurgia estética, trabalhada por mãos hábeis de mestres especialistas, não é difícil alcançar o pretendido –– um rosto belo, renovado e atraente. Hoje é possível transformar, com facilidade e rapidez uma face caveirosa em um rosto de Vênus. Os cirurgiões-esteticistas estão mudando as feições das pessoas (pena é que não possam mudar, também, os sentimentos e os valores morais).

Mas no rosto, há boca. E na boca, dentes, E temos, então, outra moda. Moda exclusiva de adolescentes e jovens, não ideada por eles que – pela idade e pela cultura – não a adotariam. Trata-se dos dentes tachados pelos aparelhos ortodônticos. Os jovens que sempre se sobressaíram pelos seus sorrisos alvares, agora irradiam sorrisos alvinegros. É uma febre que leva os pais a contratar os serviços profissionais de um ortodontista para colocar um dentinho ligeiramente encavalitado no outro, no alinhamento da arcada dentária. Os ortodontistas agradecem, embolsam bom dinheiro e não desestimulam os pais, da idéia. É sabido que os protesistas ao confeccionar uma peça protética (dentadura, ponte fixa ou móvel), procuram simular os dentes naturais, desviando-os, levemente, do alinhamento da arcada ou dando-lhes uma tonalidade tal que os façam parecer naturais.

E há, ainda, na cabeça, um ponto a ser considerado –– os cabelos. Quem não sabe que os cabelos são um enfeite. Um careca não gosta de se ver sem pelo. Logo sai à procura de quem lhe possa ataviar a cabeça. Vai procurar um peruqueiro ou um cirurgião-plástico.

Os cabelos têm, também, a sua moda. Homens e mulheres apresentam-se em público com fantasiosas cabeleiras. Há até, uma inversão nos padrões tradicionais –– homens guedelhudos, mulheres de cabelos curtos. Mesmo que não haja muitos guedelhudos há, contudo, muita barba na cara. E por quê? Porque a moda, agora, é ser barbaçudo. O que antes era considerado desleixo agora passou a ser chique, elegante, coisa de gente apurada. É a moda.

Voltando aos cabelos é de salientar a variada coleção de cortes apresentados, notadamente por praticantes do esporte, com ênfase para os jogadores de futebol. Há de tudo nessas cabeças, tão orgulhosamente expostas aos olhares públicos. Alguns figurinos são tão artísticos que deixam seus portadores mais em evidência pela cabeleira do que pelo trato com a bola. Mas por que tanto empenho em enfeitar a cabeça? Claro, se não há nada ou quase nada a mostrar por dentro, pelo menos mostra-se que se tem alguma coisa por fora. Quem não conhece a trova de Laurindo Rabelo: “cabeça, triste é dizê-lo / cabeça, que desconsolo / por fora não tem cabelo / por dentro não tem miolo”. Pois, no caso dos jogadores, por fora há cabelo e um cabelo artisticamente traçado. Mas, na maioria dos casos, por dentro resta muito pouco.

Mais abaixo –– os seios

Os seios assumem relevância especial no naipe feminino. As mulheres querem seios imensos, redondos, empinados. O médico esteticista faz-lhes a vontade e enche-os de colágeno. Sendo assim, os homens não mais apertam seios, mas verdadeiras “melancias”, recheadas de colágeno e botox.

E, agora, a moda chegou ali, ao lugar onde as costas mudam de nome. Já há disputas para saber quem tem as melhores nádegas (que agora, não sei porquê, virou “bumbum”). E aí entra em ação, mais uma vez, o botox e o colágeno. Tudo para dar as mais atraentes e mais sensuais curvas e arredondamentos.

Ora, o ser humano, como qualquer moeda ou página de livro possui, também, um rosto e um verso, subentendido, a frente e a parte de trás.

Sendo assim, quando há um concurso de misses, os jurados, para bem julgar, são obrigados a observar –– e bem observar –– o rosto e o verso. Se a candidata escolhida o for pelo rosto e pelo verso, dilacera-me uma dúvida: pelo rosto, certamente, ganhará dinheiro, títulos, carros, viagens, promessas de emprego, propostas de casamento, “et reliqua”. Mas, e pelo verso? Se os jurados a aclamaram, também, pelo verso, será que a vencedora receberá um convite para fazer parte de uma Academia de Letras?

Andar na moda é pertencer a um rebanho. É ser “rebanho”. O rebanho anda sempre junto e todos se comportam de igual modo. Às vezes, se um de seus elementos –– por desconhecida razão –– envereda por uma qualquer azinhaga, todos o seguem e, logo, todos se juntam. No rebanho não há um “condutor”. O condutor está sempre fora do conjunto.

O andar na moda é o retrato fidedigno da natureza medíocre do rebanho. O “rebanho”, aqui, é a massa humana que aceita, passivamente, o que um indivíduo (homem ou mulher) idealiza e materializa, lançando, após, seu “produto” no vasto mercado mundial. Há, acaso, algum sentido nesse tipo de comportamento? Um pacóvio, um badameco qualquer diz que eu tenho de andar com calças desbotadas ou esfarrapadas e eu baixo a cerviz e aceito. Não. Eu sei como tenho de me vestir. Eu visto-me à minha moda. Sou eu que a dito e não o tal palerma. Ou se uma determinada senhora alvitrar que as mulheres têm de andar com a saia arrastando pelo chão, como se fora uma caudatária de Mafoma; ou se, pelo contrário, a tem de usar tão curta que permita a visualização da peça íntima, logo abaixo, a mulher se segue essa voz e passa a vestir-se segundo ela, então, temos uma mulher sujeita, abdicando de seu direito a vestir-se conforme seu gosto. Portanto, podemos afirmar que o homem ou a mulher não têm gosto ao vestir-se; não têm gosto ao pentear-se; não têm gosto nos adereços que usa. Perde o seu caráter, a sua individualidade e deixa-se conduzir pelos ditames de alguém que não conhece. Entra assim, homem ou mulher, no “rebanho”. E o “rebanho” não tem voz, não tem vontade. Apetece-lhe, apenas, seguir o “pastor”, à distância.

Então, tem cabimento um “quidam” qualquer mandar um noivo para o altar, todo enfarpelado, terno e gravata e com tênis ou mesmo chinelo de dedo, nos pés. Aquele que aceitar a fórmula vale menos que o tal “quidam”. É um ser degradado. Um aviltado que não tem  sobranceria, que verga a espinha a qualquer embusteiro.

 

 

 

MEDALHA DE PRATA

 

FERNANDO BEVILÁCQUA (RIO DE JANEIRO - RJ)

ESCOLHAS

Impossível escapar da morte - e das escolhas. A primeira independe da vontade; assemelha-se ao sistema autônomo do organismo (o popular vagossimpático) - você não controla os movimentos do seu intestino nem as batidas de seu coração, por exemplos. Sob este aspecto você não vai sofrer de arrependimentos ou de angústias o que, surpreendentemente, pode ser mais suave do que uma escolha catastrófica.

Esta última é ato consciente (como um chute) e determinante dos rumos de sua existência. Ao contrário da morte, que é definitiva, irrevogável e sem possibilidade de revisão, a escolha dá ao “seu proprietário” o direito de mudança, troca ou mesmo abandono.

Não há escolha que seja inócua. Lidar com os resultados de uma escolha é um dos mais instigantes desafios do homem. Uma escolha pode ser determinante de felicidade ou infelicidade, de paz ou tormenta e até de vida ou de morte.

Por outro lado, a escolha pode ter caráter e consequências exclusivamente pessoais ou alcançar dimensões sociais. Nada é mais pessoal e intransferível do que uma escolha. Você pode ter influências, opiniões e inspirações externas numa escolha, mas a decisão final será sempre e exclusivamente sua, numa solitária consulta à sua consciência.

De forma geral, o ser humano se debruça com mais atenção e cuidado sobre uma escolha que possa ocasionar consequências pessoais imediatas, do que uma outra que se mostre (aparentemente) distante de sua “pele”. Este último caso tem no exercício do voto o exemplo mais emblemático. Isto está associado a uma das características quase insuperáveis do ser humano – o imediatismo. Os homens, em particular, usam e abusam da rapidez em suas satisfações mais primitivas. São seres imediatistas por excelência! As mulheres têm outros “defeitos”.

A escolha efetuada por intermédio do voto é considerada pela maioria como o mais elevado estágio do exercício da democracia. Eu, de cá, não aposto, de forma plena, neste “aforismo”. Reparem: qualquer representante do povo, quando eleito, tem, no mínimo, quatro anos de “estacionamento” no poder do cargo. Isto significa que há que se “aturar”, por aquele período, o eleito, mesmo que depois se revele uma péssima escolha. Isto porque a decantada democracia é quase engessada para destituir o ocupante do cargo, comprovada suas improbidades e/ou ineficácia no exercício do mandato. Acreditaria no desenvolvimento pleno da democracia, caso houvesse a mesma facilidade de deposição que de eleição. Conclusão: no palco da eleição de governantes, identificada uma escolha equivocada, você terá que digeri-la, compulsoriamente, por quatro anos, com quase nenhuma possibilidade de eliminá-la através de “purgantes democráticos”. Quão necessários são tais “medicamentos”! 

Não é difícil concluir (e sem qualquer originalidade) que sua passagem terrena é atapetada por suas escolhas. “Céu” ou “Inferno” estarão sempre à espreita nas margens de sua estrada. Apesar de o “cardápio” ser simples, do tipo alternativo (ou um ou outro), o desdobramento do mesmo é prova de múltipla escolha, com incontáveis lacunas para preenchimento. Curioso é que você que será o corretor e o revisor da prova –  tanto sua aprovação como reprovação serão, ambas, de responsabilidade única – você.  Atenção, pois!

Repare que os deuses do universo são complacentes e generosos com você, pois lhe oferecem oportunidades de revisões; dão-lhe ensejo para “segunda época”, “dependência”  e até  “repetência” ; que esta última seja sempre para boas escolhas.

Recordar uma visão oriental sobre o tema, vale como reflexão:

                    “Pergunta o discípulo:

                    Mestre, como me tornar um sábio?

                    Responde o Mestre – fazendo boas escolhas.

                    E como fazer boas escolhas, indaga o discípulo?

                    Identificando más escolhas, sentencia o Mestre”.

 

 

 

FERNANDO BEVILÁCQUA (RIO DE JANEIRO - RJ)

PARA QUE SERVEM AS RELIGIÕES?

 

Religião – “conjunto determinado de crenças, de dogmas que definem a relação do homem com o sagrado; conjunto de práticas, de ritos específicos, próprios a cada uma dessas crenças; crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s)”.

A origem da palavra é latina – relifio; discute-se, contudo, se o vocábulo provém de religar, o que dá ideia de ligação do homem com os deuses ou com o sagrado.

Como é fácil de depreender, as religiões têm seus estatuto e regimento, tal como qualquer corporação, civil ou militar. Embora a escolha de tal ou qual religião seja “democraticamente” fruto de escolha íntima, exige-se fidelidade às regras e doutrinas, do mesmo modo que as novas normas do nosso contexto político-partidário. Não convem, pois, trocas frequentes de crenças religiosas. Tanto como no âmbito das religiões como no terreno político-partidário, a expulsão do “partido religioso” está prevista, apenas designada, em alguns casos, por nomenclatura diferente.

Crenças, devoções, adorações, obediência e dogmas, são todos princípios ligados, conceitualmente, ao termo religião.

Nasceram as religiões com o homem posto aqui na terra. Fenômenos naturais, a princípio, e ícones depois, culminando com seres humanos finalmente, sempre compartilharam da fundação e da evolução das religiões. Relâmpagos, trovões, fases da lua, eclipses e cometas, fizeram nossos antepassados curvarem-se em adoração e temor, frente a tais avisos divinos, sagrados, indecifráveis. É de pasmar que aqueles homens, nascituros de primeira viagem, já idealizassem o temor como elo inicial de ligação com Deus – afinal, ligação ou afastamento? Parece que Deus nasceu “elitista” (afastado da plebe) e “padrasto”. Não queria ser amado, mas temido! Será isto crível, possível?

Mais tarde, com os homens reunidos em grupamentos sociais mais “adestrados e orquestrados”, surgiram as figuras, quase sempre ameaçadoras, representadas por animais selvagens e ferozes ou mistos de humanos e animais – eram os ícones a serem adorados pelo rebanho conduzido pelos “administradores do bem e do mal”.

Nas chamadas antigas civilizações, o politeísmo era a regra – assírios, babilônicos, fenícios, persas, egípcios, gregos e romanos, entre outras, tinham “fartura” de deuses para adorarem e reverenciarem; verdadeiros álbuns de escolhas divinas.

Cada civilização escolhia suas entidades sagradas, dando-lhes nomes variados. Curioso é o fato de que, independente da idade e do grau de aperfeiçoamento dos povos, foram os elementos da natureza e fatos e componentes acompanhantes do homem, os eleitos para adoração, haja vista – o sol, a terra, a lua, o fogo, a água, a caça, a guerra, o amor, a sabedoria, as confraternizações (diga-se bacanais), os eleitos para adoração. Fica clara a tendência dos povos fundadores das civilizações contemporâneas, na escolha e eleição de seus deuses.

Curioso e instigante a coexistência nessas antigas civilizações de alguns homens de rara inteligência e invulgar sabedoria, muitos inclusive fundadores de escolas de Matemática, Física, Astronomia, Filosofia e outras ciências e outros saberes, com populações inteiras curvadas a adorações sustentadas pela ignorância. Quem sabe teria aqui surgido a perversa “ocultação e impedimento” do acesso à educação e o aproveitamento da ignorância para introduzir manobras espúrias de submissão ao saber de poucos. Descobre-se o “poder do saber” para subjugar escravos moldados na ignorância. E a religião e a política aproveitam-se desse veio para o exercício do fascinante e ambicionado poder.

Como a esperteza é antiga nesse mundo, espertalhões e aproveitadores correm a ocupar seus tronos de poder. É a era dos sacerdotes, dos oráculos, dos magos, enfim, todos autodenominados emissários representantes dos deuses, com procuração para ajuizar sobre o bem e o mal, sobre a vida e a morte. Nunca ninguém viu qualquer documento assinado por Deus!

Em algumas civilizações, tais indivíduos tornaram-se mais fortes, respeitáveis e decisivos do que os próprios reis, imperadores ou outros mandatários supremos. Estes últimos nada faziam em ocasiões extremas, sem consultar os “iluminados” pelo divino, pelos deuses.

Enfraquecido o politeísmo, vão as religiões se consolidando em torno de um só Deus – instala-se o monoteísmo. Afinal poder dividido, repartido, não se compara ao poder concentrado em uma só entidade. Dissolve-se o parlamento das divindades religiosas e instala-se o presidencialismo em umas e a ditadura em outras religiões. Com um só Deus, bastaria um único “representante carnal” na terra para levar a cabo Suas determinações e orientações. Mais uma vez desconhece-se qualquer carta de nomeação desses representantes de Deus.

Todos os estatuto e regimento das religiões monoteístas têm princípios básicos comuns: o amor, a solidariedade, o perdão, a compaixão e a paz entre pessoas e povos e o mais fascinante e mágico - o encontro com Deus após a morte – oportunidade negada durante a vida. Que Deus perverso, não?

Ao longo dos séculos de consolidação e atração de adeptos às diversas religiões, o que se viu? Guerras, disputas sangrentas, traições, mortes e destruição patrocinadas por aquelas “santas” instituições religiosas. E tombam, em conflitos e massacres, católicos, protestantes e muçulmanos e a terra é adubada com o sangue de “fiéis” e “infiéis” – em nome de Deus! Controverso o exercício dos fundamentos das religiões – o amor entre as pessoas, a confraternização e a paz! Papas de um lado, líderes religiosos de representações diversas de outro, travam combates violentos e bárbaros (com contratação inclusive de mercenários) durante séculos em busca de prestígio, de poder e, inacreditável, de expansão territorial de seus domínios. Isto, e mais uma vez, a serviço de Deus. Caso realmente tais empreendimentos tivessem sido impostos aos representantes terrenos de Deus, ouso blasfemar (e pedindo perdão antecipado) dizendo que Ele escolheu mal seus emissários.

E não discorramos sobre a Inquisição, quando a “Gestapo” cristã arrancava das casas homens e mulheres e que, antes de sentenciados à morte, eram submetidos a ultrajantes, requintadas e bárbaras torturas. Muita vez a pena de morte era a mais cruel das conhecidas – a fogueira! Não tiveram os hereges da época nem direito à uma morte digna, menos sofrida! E Deus estava por trás dessas atrocidades, garantiam seus representantes.

Enquanto isso acontecia no Ocidente e no Oriente Médio, no Oriente Longínquo, outros deuses e figuras místicas vestidas (ou despidas) de pastores e avatares, mostravam às pessoas como encontrar-se com a transcendência. Para tal, a renúncia e o sacrifício eram fundamentais. Imagine-se desprezar o gosto pela vida, abdicar dos seus prazeres, todos presenteados por Deus! Pelo menos as religiões orientais (as mais longínquas) não pregavam a violência nos seus exercícios.

Séculos atravessados e pergunta-se: terminaram os conflitos? Qual nada. Estão mantidos e às claras, sem acobertamentos. As guerras santas continuam em marcha para alguns, agora mais cruéis, desumanas e desonestas que as de antes, pois não há confronto nítido e exclusivo entre facções - nas disputas, morrem ateus e politeístas, crianças, velhos e aleijados, que nada têm a ver com tais insanas demonstrações de fé.

Mais recentemente, e como a esperteza é imortal e cada vez mais se aperfeiçoa, surgem as “religiões” da crença nas contribuições dos fiéis. É a fé que, roubada dos incautos, enriquece e abastece os cofres dos “pastores”, não de almas, mas de bolsos e bolsas.

Ouso levar à consideração dos leitores duas linhas de manifestação religiosa: a primeira que cultua a “comunicação” com os que já se despediram desse nosso plano terreno (o espiritismo). Reunidos os adeptos em sessões silenciosas, ouvem e transmitem recados de almas serenas e aflitas. Nesse contexto, buscam reencontrar tranquilidades perdidas e abastecer seus espíritos para enfrentamento das vicissitudes existenciais. Outras, consideradas por muitos como seitas e não religiões propriamente ditas, originam-se, a maioria, se não todas e com seus desdobramentos, do continente africano. Mantêm o politeísmo, com entidades divinas inspiradas (a maioria) em elementos da natureza e muitas incluem sons, músicas e danças nos seus rituais. Estas, como a primeira, não propugnam por guerras e/ ou conflitos.

Não há dúvidas de que as religiões servem para alguma coisa; não é por outro motivo que estão aí desde a criação do mundo. Que cada um faça sua escolha e busque através de suas crenças, aprender e entender o que de melhor nelas existe. Fundamental, contudo, que crença e fé não se confundam com impermeáveis radicalismos.

De minha parte, e não sendo um especialista no assunto, apreciaria ver apenas uma religião dominante – a religião da consciência – sem a necessidade de apelos de perdão e de milagres a outrem. Cada um se responsabilizaria pela busca de ambos, sem intermediários, sem representantes de qualquer divindade ou entidade.

Você é o regente de sua religião.

 

 

 

MEDALHA DE BRONZE

 

FERNANDO BEVILÁCQUA (RIO DE JANEIRO - RJ)

BOÇAIS & OPORTUNISTAS UNIDOS

                                                

O oportunista, isoladamente, é um ser programado a vencer e chegar lá seja como for. É treinado a atropelar, mentir, prometer e não respeitar meios para os fins almejados – é um “finalista” a qualquer preço. São indivíduos persistentes, aliciadores incansáveis – enfim, gente perigosa.

Já os boçais, o outro lado da equação, e que eu, de cá, os classifico em três categorias – a) o boçal de pai e mãe; b) o boçal quimicamente puro e c) o boçal militante – merecem rasas considerações (precisam ser rasas, pois boçais não têm como atingir profundidades além da superfície). Os dois primeiros são praticamente isentos de culpa, pois que vinculados a condições genéticas um e congênitas (não necessariamente associadas a condições heredo-familiares), o outro. Já o boçal militante, deste sim, tenho medo, pois que sai pelo mundo a proclamar e difundir asneiras. Como quase sempre, tem inegável poder de comunicação de massa, consegue atrair ouvintes e, não raro, a aderência de muitos às suas estúpidas falações. É, pois, ambulante perigoso.

Não é difícil associar a boçalidade ao despreparo educacional e cultural. Acontece que os “tropeiros das boçalidades” têm como característica marcante, a certeza e a confiança em seus iluminados anúncios públicos; têm coragem suficiente para ir adiante sem pejo; não há temas de que não tenham enciclopédico conhecimento e, sendo assim, deitam verborragia.

É com esses coitados que os oportunistas montam seus planos e projetos rumo às ambições pessoais.

Episódios atravessados pelo país em momentos recentes demonstram bem o regozijo dos aproveitadores cavalgando no lombo dos boçais militantes.

O mais emblemático é a “sobremesa” que tem acompanhado as manifestações (muitas justas) dos professores em greve. A respeito de greves, a melhor apreciação sobre a mesma ouvi de um “grevista profissional” – “é fácil iniciar uma greve; difícil é sair dela, conquistadas as reivindicações”; já observaram que uma reclamação transformada em greve por ajuste salarial de 20% (p. exemplo) nunca termina com a exigência de 20%, mas com a concessão de 10/12%? Acordos muito abaixo de, às vezes, menos de 50% do teto almejado, fazem terminar greves causadores de grandes transtornos sociais.

Será que os indignados professores em sua greve não perceberam que as ações desses abomináveis “black blocs”, que nada mais são que marginais selvagens e destruidores de tudo que julgam não lhes pertencerem sejam caronas nas reivindicações dos professores? Eis o selo da boçalidade tatuada – os efeitos dos vandalismos serão cobrados deles e da sociedade omissa quando dos reparos das destruições, sejam públicas ou privadas. E pasmem! Tem gente que aprova! Pois é, a greve dos professores serve como “catalisador” da selvageria dos boçais black-blocs. E que os boçais e seus bandos busquem nos dicionários o significado de catalisador! Reajam professores, apoiando e estimulando a polícia e a justiça para desmontar a equação boçais/oportunistas. Demonstrem que têm justo e lúcido entendimento dos acontecimentos.

Em outro ponto da curva (para falar em linguagem atualizada), está recente episódio relacionado aos roubos de cães de uma instituição paulista de pesquisa.

Boçais, que não têm qualquer informação, iniciação ou entendimento do que seja pesquisa científica no campo das ciências biológicas, apresentam-se à sociedade, como (falsos) humanistas – roubando cães a serviço de pesquisas biológicas. Para tanto, invadem instituto de investigação científica e liberam cães que são, na verdade, “auxiliares” de médicos e biólogos que buscam por aprimoramentos e novas descobertas na gênese e tratamento de moléstias que atormentam e ameaçam a vida humana. Alegam esses boçais anticientíficos que os pobres animais são submetidos a maus tratos e brutais procedimentos “torturantes”. São tão revoltados contra a pesquisa “colaborativa” que imagino seriam capazes de oferecer pais, mães, filhos, amigos e outros entes menos queridos que os animais para a conclusão das experiências. Vou lembrar de dois fatos históricos: um relacionado ao fator Rh (e atenção boçais: Rh não se refere a “recursos humanos”) e que passo a expor às mentes boçais, na tentativa de  torná-las menos insuficientes e ridículas. O chamado fator Rh tem sua sigla derivada de Rhesus, um simpático macaquinho que, aprisionado em jaulas de laboratórios de pesquisa, nos idos de 1940, e com o auxílio de outros colaboradores associados – os peludos coelhinhos – permitiram a descoberta do fator Rh, este conhecido por todos que conhecem seu tipo sanguíneo – mas desconhecem e não louvam o amigo anônimo, o macaquinho Rhesus. Quantos filhos de boçais, antigos e recentes, já não foram salvos da fatal enfermidade “eritroblatose fetal” porque macacos e coelhos estiveram ao lado de benfeitores (malvados torturadores) da humanidade. Até quando vocês, boçais ingratos e incansáveis estarão em ação? Um outro fato, que não merece nem apoio e muito menos aplausos, foi o ocorrido nos campos de concentração impostos pelos nazistas ao longo da 2ª Guerra Mundial. Nem cães, coelhos, camundongos ou outros animais, serviram para observação de resultados de experimentos médico-biológicos; não havia fase intermediária, entre o protocolo inicial da pesquisa, como mandam a ética e a conduta humana desses “nossos tempos mais civilizados”, lançando mão de resultados observados primeiro em animais para, posteriormente, se considerados favoráveis, aplicar o experimento em humanos. Àquela época os humanos eram os “animais de laboratório”. Cães, coelhos, camundongos, porquinhos da Índia nada “sofriam” – estavam libertos das gaiolas e jaulas dos laboratórios.

Para quem desconhece, e acredito ser a maioria, as experiências em anima nobile efetuadas pelos insanos nazistas, muitas conduziram a descobertas médicas notáveis. Tais descobertas, efetuadas em tempo curto, pois que os resultados eram imediatos pela ausência dos testes em animais de laboratório, estabeleceram bases fisiológicas científicas sobre muitos distúrbios de saúde, com destaque para a insuficiência renal aguda, comum em tempos de guerra, fruto das hemorragias massivas dos ferimentos por arma de fogo. Longe de louvar os métodos nazistas, muitos pais, filhos, irmãos e amigos queridos dos atuais boçais em ação e outras pessoas, estão vivas, hoje, graças àqueles abomináveis experimentos.

Desmontado(?) o nazismo no mundo atual e persistindo, entre os regimes de limitação das liberdades, o comunismo – ideologia pela qual almejam e oram os atuais (des)governantes do país – nada devemos temer quanto ao retorno das atrocidades experimentais dos idos de 1940, isto porque os comunistas não têm muito interesse em pesquisas científicas; eles matam sem aproveitar “cobaias” utilíssimas.

Escrever em demasia cansa o leitor e desvia a atenção reflexiva sobre o tema apresentado.

De toda forma, “Boçais e Oportunistas Unidos”, só com educação de qualidade (não massificada para efeitos estatísticos) serão vencidos.

 

 

 

 

FERNANDO BEVILÁCQUA (RIO DE JANEIRO - RJ)

O GOSTO E O GOZO PELA CORRUPÇÃO E PELA MENTIRA

 

Parede coisa de masoquista – e é.

O masoquismo não é apenas concepção psicanalista. Pode ser decretado, desenvolvido e disseminado pelas rudezas intelectual e de princípios educacionais. Em resumo: certas pessoas e muitos conglomerados sociais sentem-se bem, mesmo se autoflagelando, sem experimentar dor e/ou sofrimento por escolhas flagrantemente nocivas para os mesmos.

Na verdade, na visão de um psiquiatra de boa formação, não será absurdo submeter tais circunstâncias a salutar e rigorosos tratamentos.

Esta a quase insuperável missão da sociologia, que tem poucos recursos “científicos” para testar, na prática, atitudes e escolhas de um grupamento social. Exemplificando: como selecionar, pelo menos 2 grupos, obedecendo aos critérios de duplo cego, para levar uma pesquisa em nível acreditável? E ainda querem, os sociólogos, inserir suas disciplinas em “ciências sociológicas”. É momento de parar para refletir.

Pois bem, sem planos e/ou critérios “científicos”, vou expor, sem pretensões de conclusões igualmente “científicas”, o que imagino estar acontecendo nesta nossa ainda indescoberta Pindorama.

São quase 12 anos passados em aberto convívio com a corrupção, a farsa, a mentira e o populismo obsceno e ainda assim, mesmo os não presenteados com óbolos governamentais, se juntam aos desvalidos de escolaridade para engordar percentuais de franca aprovação às diretrizes dos governos que assaltaram o poder. E asseguro, que entre os aprovadores dos governos que continuam assentados nas cadeiras, cujos “fundos” não cessam de alimentar os bolsos de muitos governantes e criminosos legisladores, são indivíduos capazes de ler, escrever e interpretar as linguagens escrita e falada. Pode-se dizer que são intelectuais a serviço da instalação de futuros regimes autoritários. Que combatentes pela democracia são esses? Seria reedição dos proclamados e odiosos anos de chumbo ou apenas mudança da cor do chumbo – de rapidez cada vez mais acentuada, é até possível que eu, em breve chegando aos 80, ainda venha a conviver com a “vitória vermelha” e, sem considerações terroristas, ir para o paredão, fuzilado por “médicos”(?) cubanos.

Não me entristeço nem fico receoso, pois certamente estarei em boa e civilizada companhia.

Quem não conhece um professor universitário, um pesquisador renomado, um escritor, poeta ou músico de cultura densa, que não apoia os chefes e líderes dos patriotas e ícones das câmaras legislativas da “democracia de mão única” do país?

Creio que estou sendo injusto em não considerar as múltiplas conquistas dos vários prêmios Nobel conquistados pelos intelectuais brasileiros nos últimos 12 anos de governança. Doze anos ou doze décadas? Quem lembra de algum?

Neste nosso incipiente e “infringente” país que se quer anunciar como democrático, ainda se acredita que o exercício democrático é exercido apenas pelo voto, elegendo os representantes do povo em seus diversos segmentos político-administrativos. E utilizando-se as urnas eletrônicas, já comprovadamente manipuláveis, aquele original produto tupiniquim e importado por todos os países democráticos do mundo em suas eleições – a urna eletrônica. Talvez aqui uma injustiça dos julgadores do Prêmio Nobel não concedendo ao Brasil troféu em “tecnologia de votação”. Que primitivismo! O verdadeiro exercício democrático está simbolizado menos pela eleição do que pela remoção do cargo daqueles que não servem ao povo, mas a si próprios.

Paciência habitantes da Pindorama. Quem sabe em mais 124 anos (tempo atual de duração de nossa República) vamos remendar os nossos equívocos e passos mal dados.

Se nossa elite cultural e científica aposta e apoia a mediocridade e os “novos rumos” da democracia brasileira, o que esperar de um país de vira-latas?

E sabem como alcançar os invejáveis patamares de progresso, conforto social e vontade de permanecer no país sem convulsões emigratórias a exemplo dos EUA?

Através do trabalho – muito e sério trabalho – zelo pela educação e cadeia para políticos e empresários corruptos. Por mim o “sistema chinês” é o mais recomendável – fuzilamento dos inimigos e traidores da pátria. Melhor do que isso só os japoneses, que economizam balas de fuzil do governo, autoeliminando-se pela voz implacável da consciência!

É preciso orar, e muito. Salve-nos Francisco!

 

 

                                           

RÔMULO CÉSAR MELO (RECIFE - PE)

WOLVER

 

Deveria ser assim o sonho de um filho. Poder continuar, embarcar junto nele e com ele esticar a corda até quando aquele menino, que parece você sendo menor de tamanho, embora muito mais especial, quiser sonhar, apenas deixa, deixa. Papai Noel existe, pai? Claro, você tem recebido os presentes nos Natais, num é verdade? Como pai, apenas apoio e acredito naquilo que ele quer acreditar. Afinal, o tempo da realidade chegará um dia e os sonhos serão consumidos pela vida nada lúdica. Não serei eu a diluir a fantasia da criança. Eu não. Já bastam os meus próprios sonhos abortados.

 

O boneco do Wolverine, ao pequeno, não é apenas o mutante dos filmes e desenhos animados. Deixa de ser brinquedo, torna-se amigo. Queria ser o herói de meu filho igual àquele boneco vestindo um uniforme amarelo e azul, garras enormes, com o poder da regeneração que lhe empresta a imortalidade; vejo em mim alguém tão pequeno, um homem comum, um pai, se é que pode haver algo de ordinário na figura que se junta a outra da mesma espécie para gerar a nova alma, uma vida.

 

No fundo, revela-se o medo de deixar de exercer a contento o ofício sagrado da paternidade, então, quem sabe esse pai claudicante não transfere ao brinquedo a imagem do que gostaria de ser, vislumbrem o quanto seria acarinhado, dormiríamos juntos, filho e brinquedo-pai, seria a criança quem me colocaria aos pés do altar do sono e me tornaria, de fato, importante, diria indispensável aos olhos pueris como é aquele boneco; mas, haverá um dia em que até mesmo o grande e querido Wolverine será esquecido numa prateleira ou doado a outras crianças, tudo passa, tudo é transitório, menos o amor de um pai pelo filho.

 

Fomos à praia, pedimos petiscos e cervejas, tudo certo, céu azul, sol a pino, o meu menino com o Wolverine mergulhado na piscina feita na areia ao lado do Capitão. Depois os três, o menino e os dois vingadores, foram tomar emprestado pedaços de mar, conchinhas, colocadas num copo de plástico. Sob o sol do meio-dia, confundi os copos e bebi as conchinhas no lugar da cerveja.

 

Despertei trôpego, sem âncora, marolado, havia água e sal, queimaram dentro de mim oceanos, senti os redemoinhos e todas as correntes marítimas. Ardeu tanto que chorei duas ondas. No estômago samburá se encheu de peixes, sargaços saíam dos ouvidos e os olhos viam o horizonte de um balé mágico de cavalos-marinhos “nem mesmo a chuva tinha mãos tão pequenas” a colherem pedaços daquele mar. Copo mágico. Depois de dois dias ainda incomoda e entorpece o canto das sereias e quando de ressaca sempre sou náufrago.

 

Ouvi estampidos da fria realidade que me acordaram; depois, formou-se um corre-corre. Será possível, tiros num dia de sol em plena quarta-feira de praia? Sim, o mal das drogas, disseram, um viciado, Galeguinho o nome dele, tombou vazado por cinco balas em plena areia de Porto de Galinhas, como nem se faz na covardia com um galináceo gordo na hora do almoço. Wolverine se agitou, estava tenso, suava decepcionado com o ser humano, somos ferozes, bichos, por causa de dinheiro matamos o semelhante que nem galinha...Onde estava o pai do Galeguinho? Que história existiria por trás daquela vida finda na praia, pelos revólveres de traficantes ou agiotas?

 

Almoçamos, tomamos sorvete. Foi a última vez que Wolverine foi visto. Só de noite demos por falta; meu filho chorava pelo amigo, havia sumido, o Capitão América se sentia solitário, e agora, papai, o que aconteceu com o Wolverine? O que poderia responder? Foi capturado por Magneto, filhão. Dormimos sem ele. Acordamos num domingo, fim de festa, voltar para casa. Meu filho insistia, não podemos abandonar o Wolverine, pai, o Magneto vai fazer mal a ele como fizeram com o rapaz na praia. Lembrei do episódio da tartaruga. Osvaldo, esse o nome do bicho, foi levado pelas crianças para passar a tarde na casa de um amiguinho da escola. Escondeu-se por lá e nunca mais voltou. Ninguém jamais soube do paradeiro de Osvaldo, coitado. Entendi tudo.

 

Percebi que não devemos abandonar nossos filhos e suas dores e bichinhos e bonecos. A fantasia ainda é a grande alternativa à realidade. Uma fantasia sem álcool, drogas, careta e sóbria, genuína, uma viagem diferente da do Galeguinho, que lhe custou a vida. Comprei a briga pelo sonho, a ilusão do meu menino, o vilão chamado egoísmo não destruiria a chama da reconquista do X-man perdido. Decidimos voltar à vila de Porto, buscar o herói, toda a família focada em não menosprezar nossas convicções de lealdade, jamais voltaríamos ao Recife sem o Wolverine, um por todos, todos por um. Abramos uns parênteses (Estava cansado, ressacado, queria almoçar na cidade, meu time jogaria às cinco da tarde, mas havia meu filho, o sonho dele, a vontade de não abandonar não apenas um boneco de plástico; um amigo, a chance de mostrar, de fazer o certo e não apenas o blablabla dos pais. Por isso deixei de lado o egoísmo).

 

Começamos o resgate. Procuramos no restaurante, nas ruas, até chegarmos à sorveteria. Fomos pegos de surpresa, o Wolv, já chamo assim, me sinto íntimo, quase um parceiro, esteve por lá. Estava lá; mas a menina que o achou, desamparado na mesa, só chegaria para trabalhar dentro de duas horas. Porra, duas horas parado numa sorveteria? Se ainda fosse num boteco assistindo ao jogo da Alemanha pela Eurocopa.  Houve um instante, confesso, que quase deixei o boneco, os projetos de ser um bom pai e as fantasias sobre a mesa da sorveteria, mas o olhar pidão do meu filho me convenceu de que esperar seria a melhor alternativa. Aprender a esperar, controlar a ansiedade em nome de um bem maior, nada vale mais do que um sorriso de criança.

 

No meu tempo de menino não havia X-men em filmes. O Superman, sim, era o Cristopher Reeve. E meu pai nunca foi um herói, isso quando estava em casa, dava o ar de sua graça, quantas viagens, quantas viagens, não era o Superman, definitivamente, não, porque viajava de avião, embora se esforçasse do jeito dele e fazia o melhor possível dentro dos limites. Nem eu era o Wolverine. Duas horas sentados, eu e o pirralho, esperando a chegada do X-man. Estava com as garras destroçadas. Já não era o mesmo que nos deixou. Nem eu era o mesmo ao me saber tão paciente com a preocupação do guri.

 

Não sei se Wolverine, indignado, sem conseguir controlar o instinto de justiça foi atrás do assassino de Galeguinho, tampouco se bebeu todas na noite de Porto de Galinhas ao lado de um amigo mutante do tipo “Homem-Galo da Madrugada” ou de uma dama nada heroína. Jamais entenderia os motivos de não ter ido conosco naquele sábado, nem admitiria á burocrática solução de ter sido apenas um esquecimento de um menino de três anos aliada à desatenção dos pais. Retornou porque nós o esperamos com todo o bem querer.

 

E voltei a ser um menino que, mesmo adulto, entende que sonhar faz parte da caminhada, é preciso e possível e necessário. Ao ver o sorriso nos olhos do meu filho, ao abraçar com tanto carinho aquele boneco, e depois receber um abraço como quem diz, valeu, pai, pude entender o principal. O amor é o maior bem e tudo que por ele é feito vale a pena, aproveitar cada momento dessa magia de ser pai. Por isso o Wolverine é imortal. Por saber e conseguir volver quando com saudade o esperam. E quando me senti menino virei herói.

 

 

 

ROSSIDÊ RODRIGUES MACHADO (SÃO VICENTE - SP)

SER ESPERTO

 

            Ser esperto é mais do que correr, competir na São Sivestre; dar aquele salto de metros de arrancar aplausos como atleta de uma Olimpíada; erguer a taça da Copa do Mundo; ser o primeiro da Fórmula Um; colecionar troféus; subir no pódio, vibrar com a explosão da champanhe, da euforia, a alegria, a emoção de campeão, de missão cumprida!

           Ser esperto é mais! É ser movido por um espírito dos deuses, fantástico! Prova de fogo que o faz esplendoroso como o rei dos astros. Derrama brilho, calor, galante e sedutor; irradia deslumbre como o do sol no infinito, lá do alto. Amado, venerado pela sua grandeza, seu fascínio, seu valor. Um intenso e infindo vibrar pela energia que de se desprende e sua galáxia ilumina; sem timidez, sem calafrio, sem temor. Encara e abraça o dia a dia, não se intimida frente aos tropeços, aos obstáculos da sombra do não, do vale do desprezo, das farpas da indelicadeza, da irreverência... Sua luta é mais do que a conquista de uma medalha, de um título. Vai além!

           Orgulha-se de olhar no espelho, descobrir que sua imagem é de um ser humano como outro qualquer, ninguém é melhor que ninguém, apenas uma diferença, cada um é uma pedra, mas com a liberdade de se lapidar, potencializar o seu brilho, seu quilate, torná-la preciosa pelo o valor do irradiar de sua luz pelo caminho que seu irmão, que seu próximo trilhará. Não importa onde estiver, dependerá de você cintilar na terceira, na segunda ou primeira grandeza.

             Aqui nesta terra, a vida é sua aliada, sua companheira. Eis o segredo! No jogo da vida acerta quem se valoriza, investe no seu maior tesouro, o conhecimento. Nada cai do céu e nem vem numa caixinha de presente, mas no solo da mente pode se semear e cultivar a semente que regada pelo seu objetivo, intuição, sua garra e compromisso lhe levará em frente, mergulhar nas letras, na ciência.

           Pedras no caminho, dificuldades, quem não tem? Mas problemas se resolvem multiplicando o carisma com um sorriso, somar atitude e perseverança no eu quero, no eu posso, no eu faço. Erguer olhar, vislumbrar com o longe, o horizonte que lhe convida a ir para lá. Não diz onde, nem lhe dá o endereço porque é você que irá determinar onde irá chegar.  Sua meta, sua felicidade, seu triunfo não é subir no pódio, exibir um título de campeão, mas aquela chama incendiada pelo exemplo de um sábio, um coração, uma mente que cativa, transborda amor.

            Ser esperto é zerar o pessimismo, o comodismo, hastear uma bandeira pelo bem, pela paz de todos à sua volta, contribuir para um mundo sem violência, mais humano, mais justo, sempre melhor!

 

 

 

EM HISTÓRIA MILITAR

 

MEDALHA DE OURO

 

RÔMULO CÉSAR MELO (RECIFE - PE)

INVISÍVEL SOM DE GAITA

 

Sentado na calçada próximo à entrada da estação de metrô, ouviu as sirenes em alto volume e alguém o puxou pela camisa até o lugar mais protegido do bairro de Scheunenviertel, transformado num abrigo anti ataque aéreo. Nos corredores, as pessoas tinham de passar em fila diante do aperto das paredes descascadas com extintores vermelhos pendurados, aspecto de sujeira, até chegarem a espaços mais amplos, onde desciam escadas com degraus e corrimão de alumínio. Defronte aos banheiros, a sala de controle, resumida a uma mesa, um telégrafo e um armário com máscaras de proteção contra eventual ataque com gás; dois pares de beliche, onde dormiam três ou quatro soldados, controlando o acesso das pessoas, o pouco de água, mantendo a ordem e afastando qualquer espécie de disputa à base dos cassetetes e coronhadas.

 

O menino podia ouvir as conversas, o burburinho reflexo da agonia, o barulho do corre-corre, o cheiro de fumaça misturada ao esgoto, o choro, os gritos de lamentação, alguns reclamavam da escuridão que para ele já era bem conhecida. Siga os dizeres das tintas fosforescentes, filho, indicam o caminho aonde seguir, dizia aquela voz calma e rouca, certamente algum idoso. Sentia o cheiro da tinta que arranhava as narinas fazendo espirrar, tateava as paredes crespas procurando uma porta, quando uma mão pousou sobre o ombro. Alguém o guiava e ao sentir a pele enrugada dos dedos teve certeza de que se tratava da mesma pessoa que o havia conduzido àquele ambiente.

 

Sentados, lado a lado, ouviam o silvo terminar num estrondo, as bombas da Royal Air Force explodiam cada vez mais perto e o menino apertava a mão do guia. No início do conflito, Joseph, o senhor de cabelos brancos, dono de um azul de mar dentro das vistas, chegava ao abrigo, com certa dose de calma, carregando a maleta com água, comida e a gaita de estimação tocada desde a infância, presente dos pais. Tentava disfarçar a cifose que o fazia olhar o chão mais do que as outras pessoas, usando um casaco grosso, o gorro e o cachecol, para passar somente vinte minutos na estação do metrô.

 

Com o passar do tempo, cada vez mais se intensificavam os bombardeios e a espera foi se tornando maior. As pessoas vestiam várias roupas, uma por cima da outra, nas maletas levavam documentos, comida, joias, fotografias e já não se sabia quanto tempo poderia durar até a chegada da autorização para deixar o abrigo, na forma de dois toques seguidos de sirene. Ninguém poderia entrar armado ou com objetos cortantes, diante do aperto de mais e mais pessoas, havia o medo de suicídios e brigas entre os refugiados. Agora, com a derrocada alemã, os soldados já nem pediam documentos de identificação, fazendo com que ali também se protegessem estrangeiros e até mesmo judeus disfarçados. 

 

Onde estão seus pais, menino? Dormíamos quando houve a explosão. Acordei com os olhos cheios de areia deitado numa cama ao lado de uma mulher vestida de branco. Lamento bastante, filho. No início foi difícil, mas nem choro mais por mim, sabe, de verdade. É que ainda se pudesse enxergar jamais poderia ver minha família outra vez, isso é ruim; nessa guerra chata só se vê gente morrendo, melhor viver e quem sabe morrer no escuro mesmo. E o senhor, onde estão seus filhos? Não tenho mais ninguém além de mim.

 

Joseph abriu a maleta e pegou a gaita prateada. Soprava e o som saía abafado, como se o coração do velho pudesse cantar, assobiar as dores, destilando o veneno que lhe consumia através da música, as lembranças, a melancolia tomava conta daquele lugar sombrio, uma orquestra à percussão das bombas explodindo; cada vez mais perto. Os demais abrigados, reconhecendo a melodia, começaram a acompanhar, bem baixinho. A canção de ninar de Brahms transmitia calma.

O menino, de olhos fechados, para ver melhor dentro da mente, lembrava a mãe segurando a mão, a irmã deitada na cama vizinha, o barulho das bombas clareando a janela, ao redor tudo era escuridão, nem uma vela se poderia acender, um breu igual ao que as vistas agora poderiam testemunhar. Recordava as palavras dela um dia antes do fim: jamais diga seu nome de verdade, jure, ninguém merece confiança numa guerra, faça isso por sua mãe, senão terá o mesmo destino do seu pai. Deitou a cabeça no colo do novo amigo e chorou um pouco mais, até o sono estancar as lágrimas.

 

Joseph e o menino comiam a mesma ração, o velho havia dividido um pedaço de pão com água para os dois e tentavam esquecer o odor de suor, urina e fezes que impregnava o ambiente, além do calor e a falta de ar. Sentiam-se como se estivessem dentro de uma caixa de sapatos jogada no chão de um banheiro público. As pessoas se agarravam aos pertences com medo dos ladrões e engoliam os reclamos sobre as condições do lugar, com receio de serem denunciadas pelos partidários do Nazismo, um silêncio imposto pela vontade de viver. Toque mais um pouco, amigo, toque para eu dormir. Joseph tocava e os abrigados se aproximavam à penumbra, somente a lua entrando pelas frestas, o choro ouvido de todos os cantos.

 

Um grito feminino quebra o clima de paz. Faz menção de por a mão sobre os olhos do menino para que nem veja a cena, uma mãe de joelhos defronte ao corpo da filha adolescente que jaz balançando com um lençol amarrado no pescoço. Que houve, tio? Pensa em explicar que é comum às mulheres, ali no abrigo, se suicidarem com medo dos Soldados Vermelhos que, diziam, estavam próximos a Berlim. A propaganda nazista pintava os russos como filhos do demônio, bárbaros, coitadas das mulheres se seus homens perdessem a guerra. Nada demais, filho, uma senhora com crise de nervos, guerra é isso mesmo, suor, mau cheiro, fome, sangue e choro, muito choro.

 

Quando os soldados retiraram o corpo e a mãe os acompanhou pelos corredores, o choro foi ficando mais baixo, mais baixo, até que se ouviram as batidas desesperadas na porta de saída. Deixe-me sair, enterrar minha menina, esmurrava a porta por onde ninguém poderia passar sem autorização; e um seco estampido calou tudo. O velho recomeçou a tocar na gaita uma música alegre e a noite foi passando como se nada tivesse acontecido. Cada um sentia a própria dor e já era suficiente, uma anestesia contra a dor dos outros, conviver com a morte iminente parecia cruel, mas com isso o ser humano também se acostuma, pensava Joseph.

 

Ouça, filho, a batalha está acabando, assim como tudo um dia morre, os combates também têm fim. Hitler perderá essa guerra. O mundo e a natureza reagem, seja por invernos rigorosos, seja por doenças, traições e assassinatos, no final, a tirania sucumbe, ninguém domina tanta gente por tanto tempo. Esse é o jogo da guerra e da vida. Outra coisa, preciso dizer. Estou sem meu remédio, o último acabou ontem, nenhuma previsão de chegar, ainda mais nessa confusão. É possível que nem veja o final desse pesadelo e se isso acontecer fique com esta maleta. Cuidado, têm dinheiro e joias de família, um colar de diamantes, um brinco de pérolas e uma fotografia, tudo que restou da minha esposa. É seu. Procure por Lothar Schindler, um comprador de joias do centro de Berlim, diga que é neto de Joseph, fará um preço justo e cuidará de sua segurança, o meu amigo é um bom homem.

 

O som dos bombardeios e as rajadas das metralhadoras diminuíam a cada hora, ao passo que a vida de Joseph se esvaía. Fraco, tossindo bastante, os lábios arroxeados, respondia às perguntas do menino com certa dificuldade. Há quatro dias em confinamento, restavam algumas bolachas e um pouco de água. Pegue a foto dela, vá tateando até encontrar um pedaço de papel, por favor, ponha na minha mão. Está morta, tio? A esta altura temo que sim. Nada pude fazer, juro, foi sorte estar aqui falando com você. Levaram-na quando estava fora de casa. Tenho sede, pegue o cantil e me dê um gole de água, sinto frio. O senhor vai morrer também, tio? Não chore. Na guerra somente existem mortos, alguns ainda se acham vivos, mas são mortos, mais dia menos dia descobrem. Escute com atenção o que vou dizer agora: o cimento em seus olhos não impede que enxergue com o coração. Viva, filho, continue por mim. Tio, o meu nome é Jacob Stein, queria que soubesse.

 

Quando os americanos chegaram rendendo os últimos nazistas, Joseph estava de olhos fechados. Então, o menino pôde vê-lo, pela primeira e última vez, andando em direção ao corredor de saída sem ser impedido por ninguém. Em sua direção, caminhavam várias pessoas vestidas com uma roupa listrada. No meio delas, uma bela senhora se destacava pelo sorriso. Depois, a luz se apagou trazendo a escuridão de volta. Durante toda a vida, antes de dormir, o pianista Jacob Stein continuava a ouvir o invisível som da gaita, a eterna canção de ninar.

 

 

 

 

MEDALHA DE PRATA

 

FRANCISCO GONDAR (RIO DE JANEIRO - RJ)

NA IMENSIDÃO DO INFINITO

 

No decorrer dos anos 1930, em uma pequena ilha do Pacífico, vivia um garoto muito simples e sonhador, com nove anos de idade, chamado Felinto, e filho de um humilde lavrador. Diariamente Felinto visitava a praia e contemplava a imensidão das águas, o horizonte, fitando o ponto de encontro entre o céu e o mar. Seria a casa de DEUS? Seria o paraíso para onde vão pessoas boas? Assim indagava para si aquela inocente criança.

Não tardou muito, ao completar 18 anos, entrou para a escola de grumetes, conhecendo o mar e formando-se um bom marinheiro mercante. Os anos se passaram, Felinto amadureceu e cresceu na profissão e, certa vez, estava ele a bordo de um navio carregado de cereais, em Porto Limom, pronto para zarpar com destino ao Hemisfério Norte.

O navio era muito velho, estava bem carregado; as previsões meteorológicas não eram boas. Havia rumores da presença de um “Huricane” nas proximidades; enfim, um navio velho, com carga em excesso, aquela viagem seria uma temeridade. Contudo, a maior coragem do marinheiro é enfrentar seu medo e entender que sua atividade é mais do que uma profissão; é sim uma nobre missão de transportar riquezas, unindo duas ou mais nações.

Os dois primeiros dias de viagem foram parcialmente calmos. Entretanto, ao terceiro dia o vento começou a soprar cada vez mais forte, as ondas cresceram, o mar se revoltou, os embates de grandes massas de água contra o casco eram cada vez mais intensas e mais frequentes, os rebites do costado já não suportavam toda aquela força, as chapas começaram a ceder, os porões começaram a fazer água e, com isso, a carga de cereais foi se inchando a tal ponto de comprometer a estabilidade e a flutuabilidade do navio.

Naquela época não havia muitos recursos para um abandono, até mesmo as embarcações salva-vidas eram perigosas para serem utilizadas naquelas condições. Entretanto, antes que alguma providência fosse tomada, o navio emborcou, uma parte ficou submergida, depois se partiu em dois pedaços, e o desespero foi total.

Alguns tripulantes lançaram-se n’água, outros alcançaram uma balsa salva-vidas, outros não tiveram a mesma sorte e nosso amigo Felinto, tão vocacionado para o mar, viu-se nadando em meio às águas turbulentas, sem coletes, sem boias e somente com a fé que tinha em seu coração. Nadou por horas, orou a DEUS, clamou por sua vida e, no meio daquela noite escura e tempestuosa, subitamente agarrou-se a um objeto resistente, flutuante, posicionou-se sobre ele e ali permaneceu, deitado, agarrado, na esperança de avistar alguns de seus companheiros.

O tempo passou, o mar acalmou, Felinto adormeceu esgotado e, no crepúsculo de um novo dia, ao abrir os olhos Felinto, quase sem forças, contemplou o universo em sua volta. Quase prostrado, observou a imensidão do infinito que tanto admirava quando criança. O esgotamento total tomou conta de Felinto; hipotermia, sede e inanição poderiam matá-lo em poucas horas, mas pela força divina ele foi resgatado pela guarda costeira e prontamente levado a um hopital local.

 

 

Dois dias depois, ainda sedado e com alguma confusão mental, Felinto recobrou os sentidos e lembrou-se do acidente com seu navio. Perguntou pelos seus companheiros, alguns sobreviventes avistou na mesma enfermaria e, ao lado da cabeceira de seu leito, uma foto estranha, um recorte de jornal, que exibia uma grande tartaruga.

Felinto nada compreendeu quando seu leito foi rodeado de repórteres que conversavam com os médicos na língua inglesa, muito estranha e complicada para o pobre Felinto entender.

Mais tarde, o cônsul honorário de seu país foi visitá-lo, conversou com ele e disse ter sido protagonista de uma das histórias mais extraordinárias que poderia acontecer. Felinto, a princípio, não entendeu do que se tratava, mas na verdade ele foi resgatado pela guarda costeira, quase desfalecido, sobre uma grande tartaruga marinha, não muito frequente naquela área de mar. O tal objeto flutuante, com o qual Felinto se agarrou e sobre o qual adormeceu de extremo cansaço, nada mais era do que o casco de uma tartaruga gigante que o salvou daquele triste naufrágio.

Felinto chorou, murmurou palavras soltas, levantou-se com dificuldade, dirigiu-se para uma janela da enfermaria, contemplou o céu na sua imensidão infinita e agradeceu a DEUS pela sua vida. Lembrou-se dos momentos felizes de infância , entendeu sua nobre missão e prometeu para si mesmo voltar a navegar, na esperança de um dia, quem sabe, encontrar o paraíso, justamente aquele ponto em que o céu se encontra com o mar.

 

 

 

MEDALHA DE BRONZE

 

NERI FRANÇA FORNARI BOCCHESE (PATO BRANCO - PR)

UM GRANDE HOMEM

 

Celestino Fornari, nasceu na linha Borghetto, em Anta Gorda pertencente a Encantado, -RS, em 6 de abril de 1920, exatamente 34 anos após seus pais Fornari, Luigi Giovanni Battista e Goffi, Felicidade Adelaide terem desembarcado no Brasil.

O pai natural de Motta Baluffi, uma comuna da província di Cremona na região da Lombardia. A mãe de Castelgomberto – Torri di Quartesolo, comuna italiana da região do Vêneto, província de Vicenza. Ainda crianças, viajaram no mesmo navio em busca de uma Nova Pátria.

Celestino, o caçula dos 15 filhos do casal de italianos. Residindo em Arvorezinha, Rio Grande do Sul, trabalhou nas terras dos Fornari e, também  no frigorífico Busetti Fornari de Borghetto - Anta Gorda-RS.

Aos 21 anos alistou-se para servir o Exército Brasileiro, corria o ano de  1940. Desejava sair de casa, buscar novos horizontes. Moço bonito estava noivo. Possuía um bócio que o deixava constrangido. No quartel consegui o seu sonho, passou por uma cirurgia. Estava agora, livre do incomodo adquirido quando criança por ter começado muito cedo a puxar toras no mato. Um serviço pesado.

         Foi aceito, em 20 de fevereiro de 1942, no 5º. Regimento de Artilharia Montada “Regimneto Mallet” a escolha foi por sorteio. O Regimento logo depois, foi extinto e assim ele foi transferido para a I Região Militar em Santa Maria da Boca do Leão - RS.

O Brasil declarou Guerra ao Eixo, em 31 de agosto de 1942. O soldado foi para o Front. Viajou no transatlântico “USS General Mann” em 22 de setembro de 1944. Pertenceu ao 2º. Escalão comandado pelo General Cordeiro de Farias. Desembarcou no Porto de Nápoles, todo destruído pela Artilharia alemã.

No período de 06 de outubro de 1944 até 11 de agosto de 1945, lutou na Itália. Em terras estrangeiras serviu no I Grupo de Artilharia (I/IR.O.AU.R.), durante 11 meses. No Teatro de Operações, foi Identificado: Celestino 3 G 66307 - T 44 A- BRA.

Alojaram-se em barracas de Campanha, muito simples, de lonas, sem conforto, sem segurança alguma, enfrentaram o frio rigoroso de 22 Graus Negativos.  As míseras barracas foram fornecidas pelo 5º. Exército Americano, comandado pelo general Mark Clark ao qual a Força Expedicionária Brasileira passou a pertencer.

Por decreto, em 1944, a Capelania Militar enviou para a Europa os voluntários 30 sacerdotes católicos e dois pastores evangélicos. O papel deles era oficiar missas e cultos na retaguarda. Confortar com assistência individual os integrantes da tropa. Eles, mais as enfermeiras foram importantes para consolar os Pracinhas, na dura realidade de uma guerra, nos momentos de extrema privação e dor.

O comando ordenou, aos soldados brasileiros para avançarem, dada por um telefonema, no dia 12 de abril de 1945. Se não encontrassem resistência, o 3º Batalhão do 11º. Regimento de Infantaria da FEB deveria seguir para as colinas de Montese, pequena cidade ocupada pelas tropas do Exército Alemão, no Norte da Itália.

Fortemente armada, a patrulha da FEB, com 21 homens partiu às 9h e, depois de passar sem resistência por Montaurigula, seguiu para Montese. No caminho, depararam com uma colina alongada, de onde retiraram 82 minas.

Celestino esteve em combate na manhã do dia 12 de abril de 1945. Os homens da FEB romperam as linhas alemãs nos últimos contrafortes dos Apeninos, mas a tomada de Montese, na noite de 14 para 15 de abril, custou-lhes muito caro. Foi à batalha mais sangrenta para nossas tropas desde a Guerra do Paraguai, com um saldo de 426 baixas, entre mortos, feridos e desaparecidos.

Depois de intensos combates, foram vencendo a resistência alemã e, na noite de 14 de abril, já haviam dominado as encostas a Sudoeste da cidade, com reforço de outros dois pelotões. A capacidade defensiva da infantaria inimiga estava quebrada, mas a luta entrou madrugada adentro. Apesar da grande quantidade de alemães em Montese, a artilharia das forças alemã da Wermacht descarregou naquela noite cerca de 2.800 tiros.

Celestino Fornari, atuou no I Grupo de Infantaria quando da tomada de Monte Castelo, grande feito do Brasil na Segunda Guerra Mundial, no dia 21 de fevereiro de 1945, se deve à bravura dos soldados brasileiros. Considerada a mais importante fortaleza de toda a Linha Gótica, às 18h30min, Monte Castelo estava em poder dos brasileiros.

Duas semanas depois a guerra na Itália chegaria ao fim. Em homenagem aos brasileiros, Montese construiu o Museu Militar da Força Expedicionária Brasileira, no interior de um castelo do século XII.

Fez-se presente com galhardia, era motorista, com a motocicleta, à noite, sozinho emendava os Fios do Telégrafo, cortados pelos alemães. A comunicação se fazia essencial.

Não foram eles, os soldados preparados para a Guerra, não conheciam montanhas cobertas de neve e, nelas tiveram que lutar. Foram trocados pela Siderúrgica de Volta Redonda. Homens jovens, filhos da Pátria, serviram de bom negócio para o desenvolvimento do Brasil. Não receberam, ao partirem, nem roupas apropriadas para um inverno rigoroso.

A 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, estendeu suas tropas ao longo de 70 km, vigiando todos os pontos por onde os alemães tentassem passar rumo ao Norte da Itália.

Os Combatentes brasileiros improvisaram um campo cercado, para abrigar, como podiam os 14.779 alemães e italianos, feitos prisioneiros, após a rendição. Em número maior do que os pracinhas brasileiros.

Dizia Celestino: “os alemães esperavam para serem transportados por nós, lhes dávamos todo o nosso cigarro, o nosso chocolate e não os maltratávamos”.

   Recordava com emoção, os olhos enchiam de lágrimas quando relatava aos filhos que, em 19 de julho de 1944, presidida pelo General Mascarenhas de Morais, Comandante em Chefe da FEB, foi hasteada com indizível patriotismo a Bandeira do Brasil. O Pavilhão Nacional tremulou em terras da Europa, pela primeira vez em nossa história. O Verde e o Amarelo, riquezas nacionais, contrastaram com a destruição em solo italiano.

Aos Ex-combatentes, no retorno ao país, foram impostas várias restrições. Os veteranos não militares, que deram baixa, também foram proibidos de utilizar em público condecorações ou peças do vestuário expedicionário, enquanto os veteranos militares, profissionais de carreira, foram transferidos para regiões de fronteira ou distantes dos grandes centros.

O Brasil, com medo e com a falta de civilidade e patriotismo, não permitiu que os soldados se organizassem.

         Do Rio de Janeiro foram mais do que depressa despachados de trem para os seus Estados de origem. Não receberam nenhum acompanhamento médico, nem psicológico.

           Dívida que o Brasil ainda não resgatou com as famílias dos Ex-combatentes, pois eles já partiram. Elas entregaram moços cheios de vida e saúde e receberam muitos mutilados no corpo e todos eles, na alma. Celestino Fornari, trazia uma marca de guerra na sobrancelha direita, provocada por um estilhaço de granada alemã, na destruição de uma ponte.

A Pátria lhe deve para sempre, o dissabor de ter partido, sem saber que a sua família estaria amparada com sua aposentadoria Militar.

Honrou o nome de brasileiro, deixou exemplo de nobreza, dignidade aos filhos, netos, bisnetos.

Muito Obrigado, Grande Homem.

  

 

[1] Atribuída ao poeta Manoel de Barros

[2] Excerto da obra de Eduardo Galeano.

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